sábado, 9 de março de 2013

garrafa ao mar, impasse em terra firme



Eis o trailer da produção franco-israelense "Uma Garrafa no Mar de Gaza" estreada no Festival Varilux em 2012. O filme é uma adaptação do livro homônimo. O filme, como qualquer site de cinefilia informa, trata da relação entre dois jovens: Tal, uma jovem francesa  judia recém estabelecida em Israel e Naim, um palestino ligado à causa terrorista pelas tensões do cotidiano.

A franco-israelense Tal lança uma garrafa ao mar com seu email e um pedido de contato, ela deseja conhecer alguém do outro lado do muro. E Naim acolhe a garrafa. A partir de então, acompanhamos esta relação virtual entre ambos. Mas, se num primeiro momento Naim estabelece contato por mera curiosidade, este sentimento se transforma em assimilação ao longo da relação afetiva do casal 'israelo-palestino'.

SPOILER E CONTRAINFORMAÇÃO
Daqui pra frente, este texto avança com o filme. Tal é uma garota curiosa, porém corajosa o suficiente para enfrentar seu maior medo, o imaginário de um jihadista, isto é, um terrorista, um homem-bomba. E se tem coragem para enfrentar este medo, ela só o enfrenta de maneira figurada, simbólica, através das letras e do mundo virtual, e não fisicamente. Desta forma, não seria válido questionar as pretensões humanistas do filme, posto que, ao sugerir uma possível solidariedade para aqueles jovens, eles ainda continuam sendo diferentes e exclusivos?

A personagem Tal é uma contrainformante, uma ativista. Temos que levar em consideração que sua família certamente estaria ali entre os eleitores de Netanyahu, e que seu irmão é um 'S.E.A.L. israelense'. Lá pelas tantas, quando Tal parece estar afetivamente envolvida com Naim, ela questiona o irmão e pergunta pra ele se ele realmente mata palestinos. A resposta é evasiva, já que sua "guerra é limpa", ou seja, mediada pelo monitor de seu caça que torna os palestinos invisíveis. Então, em se tratando de guerra, e por extensão, de dominação,  não seria adequado perguntar por que motivos o filme insiste no progressivo letramento em francês do palestino Naim em suas incursões no Centro de Cultura Francesa?

Por sua vez, Naim também é um contrainformante, um palestino sapiens sapiens. Ele destoa dos seus pares e está à frente deles porque pensa, porque tem sentimentos, enfim, porque se humaniza diante das doces mensagens da garota franco-israelense. Além disso, ele frequenta os raros cafés caros que mantém acesso à net. Por estes motivos, ele é um traidor:  demasiado humano, ele pensa como um ocupante - que é como os palestinos classificam os israelenses. Então, não seria legítimo perguntar se a constante transformação do figurino de Naim - de um pobre palestino sujo a um sujeito urbano barbeado de camisa polo e calças íntegras - é a significativa entrada e aceitação deste ex-estranho no mundo da civilização eurocêntrica?

ASSIMILAÇÃO, ASSEMBLAGE E CANIBALISMO
Foi um jornalista húngaro, Theodor Herzl, o responsável pela invenção do nacionalismo sionista. O sionismo  foi fundado no fim do século 19 com apoio de associações filantrópicas que ajudaram a construir a ideia da superioridade do westjude, o judeu ocidental nativo da Europa Central. Indo além, Oppenheimer aprofundou esta ideologia nacional sionista com a publicação de seu artigo "Consciência de Origem e Consciência de Povo" em que declarava:


" Para os ostjude (judeus orientais, aqueles do Leste Europeu), o sionismo é uma questão de sobrevivência. Eles não podem dar-se ao luxo de abusar de seus colegas ocidentais, de cuja inteligência e capitais necessitam. A Palestina é basicamente um paraíso para os judeus oprimidos do Leste, enquanto que os sionistas ocidentais são bons patriotas de seus países natais".

Porém, esta distinção entre "judeus ocidentais superiores" e "judeus orientais inferiores" cai por terra no período do Entre-Guerras com o avanço do antissemitismo. Daí o sionismo desenvolve a prática da assimilação que trata de naturalizar aquelas diferenças internas próprias do povo judeu a fim de ganhar apoio diplomático internacional e força emocional para a causa judaica. Assimilar torna-se sinônimo de politizar a causa judaica, de pintar com cores sionistas a defesa de um Estado Nacional judeu. Israel.

O filme "Uma Garrafa no Mar de Gaza" é um exemplo de propaganda assimilacionista pelas perguntas expostas aqui. Não, o filme não é um filme humanista. Ele faz pose de humanista ao fazer uma jovem garota  lançar uma garrafa ao mar, um raso clichê artístico. Mas quem encontra a garrafa não será humanizado, pelo contrário, passará por aquilo que a crítica artística francesa chama de assemblage ou bricolage: sobre a personagem palestina de Naim são adaptados, colados e costurados valores, comportamentos, roupas e letras eurocêntricos que gradativamente borram seus valores étnicos, culturais e sociais nativos. Assim, Naim continua solto por aí, nem tanto à terra, nem tanto ao mar. Jamais o mesmo palestino, porém nunca um europeu.

PS: Fosse em Pindorama, a garotinha Tal já estaria falando tupi, andando descalça e comendo pacovás deitada em rede. Porque aqui, escreveu e leu o Macunaíma comeu.

Abraços!
Fábio