domingo, 21 de setembro de 2014

Lugares de memórias

Resumo: o artigo apresenta duas visitas históricas, sendo a primeira ao "Museu da Memória" de Montevidéu/ Uruguai e a segunda à "Villa Grimaldi", Santiago/ Chile. Ambos locais são símbolos de resistência histórica das memórias dos regimes ditatoriais latino-americanos.

COMISSÕES E VERDADES
Esse ano de 2014 já trouxe ao Brasil dois grandes desafios: a Copa do Mundo e as eleições que colocam em evidência os limites de duas grandes hegemonias políticas: a do PSDB no Estado de São Paulo e a do PT em nível federal. Porém, além desses desafios, ainda nos resta um a ser digerido a longo prazo: o dossiê final da Comissão Nacional da Verdade.


Desde o início de seus trabalhos em julho de 2012, a CNV esteve envolvida em polêmicas a respeito de suas competências, isto é, se sua prioridade seria de natureza investigativa ou se também seria capaz de judicializar casos de violações aos direitos humanos. Além disso, muito se comentou a respeito de quais verdades estariam em jogo, afinal os intelectuais que a compõem estariam, em maior ou menor grau, comprometidos historicamente com ações de esquerda que armaram sequestros e assaltos entre outras ações consideradas ilegais pelo regime militar brasileiro.

O fato é que ainda há muito a ser investigado por aqui. Dentre os motivos, podemos citar: um volume considerável de arquivos militares foram extintos; é recente o reconhecimento de que empresas e setores civis contribuíram com o aparelho de inteligência e repressão do regime militar; apesar de a Comissão Nacional servir de referência para o surgimento de mais de cem Comissões Estaduais e Municipais da Verdade, é sabida a carência que temos de patrimônios materiais que sinalizem as evidências de um passado ditatorial em nosso país. Dito de outra forma, o avanço democrático nas últimas duas décadas também tratou de institucionalizar um esquecimento hegemônico, pesado e silencioso a respeito de onde e como se praticou a repressão política em nosso país. E podemos compreender isso muito bem quanto visitamos os nossos vizinhos do Cone sul latino-americano.

LUGARES DE MEMÓRIA
Nos estudos históricos, a noção de "lugar de memória" envolve uma polêmica que exige fôlego. Afinal, o que são lugares de memória? Seriam locais que aglutinam boas experiências passadas e, por isso, ainda servem como referências presentes? Seriam espaços que frequentamos para nos lembrar (e resolver) desafios e traumas históricos para que não voltem a ocorrer? Esses lugares deveriam ser públicos ou privados? A quem eles dizem respeito? De quem eles tratam - ou deveriam tratar? Enfim, quando se diz "lugares de memória", é possível dizer que a única coisa que temos como certo é que, antes de tudo, eles são zonas de disputas políticas envolvendo significações sociais, afetivas e econômicas. Para me valer duma metáfora brutal, os "lugares de memória" são os octógonos das tensões históricas.

MUSEU DA MEMÓRIA, MONTEVIDÉU
O Museu de Montevidéu requer uma caminhada, pois ele está situado numa antiga hacienda do século dezenove distante do centro da capital. Leva-se, aproximadamente, uns trinta minutos de ônibus circular para se chegar até o local. Apesar da distância, o acesso é simples, pois pode se tomar vários ônibus a partir da avenida principal da capital, a 18 de julho.

O Museus oferece muitas publicações a respeito do regime militar que perdurou de 1973 a 1985, desde jornais de época, vídeos e pôsteres como formas de resistência política ao regime. Ao chegar ao Museu numa tarde muito, mas muito fria de julho de 2013, eu tive a feliz oportunidade de encontrar um grupo de estudantes norte-americanos que estavam sendo guiados por uma senhora muito gentil que - depois vim a saber - foi companheira de cela de José Mujica - o atual presidente uruguaio em fim de mandato.

O Museu nos oferece uma série de vestígios históricos que dão uma forte sensação de como foi o regime naquele país. Ali podemos encontrar roupas, badulaques e artesanatos produzidos pelos próprios prisioneiros políticos; ruínas de batentes, portas e trancas de celas; restos de instrumentos de tortura; uma enorme coleção de passaportes, fotos, cartas e outros documentos pessoais que restaram dos cárceres, como se pode ver na edição a seguir.


Em tempo: o Uruguai foi capaz de articular uma Comissão para a Paz a partir do ano 2000, sendo que a Anistia foi revogada em outubro de 2011. A Comissão uruguaia, além de investigativa, também conseguiu a punição de uma dezena de agentes da repressão militar, dentre eles Bordaberry, condenado a 30 anos de cárcere em 2006.

VILLA GRIMALDI
Tenho amigos que já visitaram campos de concentração europeus. E tenho a sensação de que seus relatos se aplicariam perfeitamente à experiência de uma visita à Villa Grimaldi, em Santiago... Da mesma forma que o Museu uruguaio, Grimaldi fica distante do centro comercial e turístico da capital. Isso é digno de nota porque se trata de uma forma de discriminação histórica, ou seja, uma forma de se dizer aos turistas "o que deve ser visto e o que deve ser esquecido".

O acesso à Grimaldi leva uns quarenta minutos de baldeação de metrô-e-ônibus a partir da Plaza de Armas, centro de Santiago. Ao chegar lá numa tarde fria, mas muito fria de julho de 2014, eu não encontrei uma alma viva naquela que foi o mais significativo centro de repressão do regime militar pinochetista. O local era um reduto gastronômico de imigrantes italianos até 1973. Daí o seu nome, "Villa Grimaldi". Entretanto, foi desapropriado à força pelo regime militar e passou a funcionar como centro de tortura por quase uma década. Situada ao pé da Cordilheira e vizinha do aeroporto, a Villa hoje é um patrimônio histórico tombado que abriga ruínas de um macabro passado recente da América Latina.

Eu permaneci quase três horas dentro da Villa a fim de ler com atenção todas as informações oferecidas pelo Museu. Feito isso, pratiquei uma caminhada em passo contínuo (cerca de trinta minutos) com a câmera ligada a fim de registrar um olhar de observação sobre suas ruínas. Dias depois, eu me deparei com uma parada cívica de uma fanfarra de um colégio privado ao longo do Paseo Ahumada (uma espécie de "calçadão" central). Bem, não pude me furtar às associações históricas: pensei em editar a visita à Villa com as trilhas sonoras daquela 'paradinha militar contemporânea'....


O Chile hoje vive o segundo Governo de Bachelet. Desde 1990, com o famoso "informe Rettig", o país procurou seus próprios caminhos em busca da reavaliação do seu passado militar. A partir de 2003, a Comissão Valech consolidou as políticas institucionais em torno das investigações e reparações históricas vinculadas às violações dos Direitos Humanos.

CODA: NARRAÇÃO É REDENÇÃO
Nos idos de 1930, Walter Benjamim questionava o valor da narração no mundo contemporâneo. Ele afirmava que o avanço da modernidade nos roubava a capacidade de narração. Para ele, narrar envolvia uma dimensão humana fundamental: a capacidade do ser se reencontrar consigo mesmo. A narração seria uma forma do indivíduo se desautomatizar, se desabituar, se desvincular de um cotidiano frio, burocrático e administrativo e se deixar envolver com um mistério, com um encanto maior chamado palavra. Porque é a palavra que funda a vida.

Abraços!
Profábio.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Duas hegemonias e uma questão

RESUMO: O artigo pretende ler a noção de hegemonia à luz de questões brasileiras contemporâneas.

O ano de 2014 ainda guarda uma surpresa: as eleições estaduais e federais de outubro. Elas envolvem boas expectativas porque têm o potencial de reconfigurar as estratégias partidárias locais e os rumos políticos e econômicos em torno de um novo padrão de desenvolvimento brasileiro conforme apontou Gianetti. Outros fatores contribuem para aquecer as expectativas quanto ao pleito de outubro: a obscena crise moral e social do Brasil na “Copa das Copas”, a desconfiança nua que depositamos nos representantes políticos e, enfim, os rastilhos de pólvora das Jornadas de Junho. Além dessas evidências, vamos questionar outros dois elementos de longa duração histórica que também estão em jogo: a hegemonia do Partido da Social Democracia Brasileira em escala estadual em São Paulo, o maior colégio eleitoral da federação, e a hegemonia do Partido dos Trabalhadores em nível federal. E uma referência quando se trata de hegemonia é Antonio Gramsci.


VAI SER MARXISTA NOS 1920
Gramsci foi um teórico italiano marxista que viveu entre 1891 e 1937. Nascido na Sardenha, ele se mudou para Turim, uma próspera região industrial, onde se envolveu com o Partido Socialista Italiano. Depois de conhecer o movimento operário de Paris e Moscou, ele rompeu com as leituras que seus colegas faziam do marxismo e ajudou a fundar o Partido Comunista Italiano enquanto publicava suas interpretações em jornais operários. Entretanto, a sua atividade política o colocou na mira do governo fascista de Mussolini que mandou “prender e calar esta cabeça por mais de vinte anos”. Mesmo preso, Gramsci continuou sua atividade intelectual: além de manter correspondências com familiares, ele também aprofundou suas interpretações a respeito do marxismo com originalidade, conforme veremos a seguir. Gramsci foi solto em 1937, porém veio a falecer no mesmo ano devido à tuberculose.

O CÁRCERE ENTRE GRAÇA E GRAMSCI
É comum encontrar estudos que traçam afinidades entre as biografias de Gramsci e a do escritor brasileiro Graciliano Ramos. Assim como Gramsci, o alagoano nascido em 1892 também foi vítima do fascismo: ele foi encarcerado pela polícia varguista de Filinto Müller de 1936 a 1937. O cárcere foi decisivo para a formação intelectual de ambos escritores: eles experimentaram a dura rotina ambivalente da disciplina prisional que, ao mesmo tempo que aumenta a força útil e econômica dos corpos também diminui a força política dos mesmos ao acentuar o exercício da obediência. Em outras palavras, como diria Foucault, a disciplina “dissocia o poder do corpo, pois ela aumenta a sua aptidão enquanto reforça a sua submissão”.

UM PACTO SOCIAL GRAMSCIANO?
Dentre as grandes questões que perturbaram Gramsci, certamente a mais traduzida no Brasil diz respeito à integração das dimensões do trabalho com a cultura e a direção política sob uma perspectiva revolucionária. Nesse sentido, ele considerava que todos nós, trabalhadores de qualquer ordem, somos intelectuais dado que o trabalho é a dimensão fundamental de reprodução da vida humana. Portanto, já que todos os trabalhadores são capazes de reproduzir suas condições de existência, eles também seriam capazes de produzir suas próprias condições culturais. Sendo assim, a revolução rumo à tomada de poder deveria ser feita de “maneira passiva” através de “processos de socialização política”, como se pouco a pouco os trabalhadores fossem conquistando postos de lideranças públicas dentre professores, advogados, jornalistas, funcionário públicos, escritores, músicos e outros formadores de opinião até, enfim, a conquista da máquina burocrática, ou seja, o Estado.

Gramsci acreditava que ao “Oriente” (leia-se Rússia/URSS) coube uma revolução frontal, armada e violenta através de uma “guerra de movimentos” para a tomada do Estado como aparato de dominação porque ela ainda desconhecia a “sociedade civil”. Por sua vez, o “Ocidente” (leia-se Itália, Alemanha e países ditos desenvolvidos no período do Entre guerras) burocratizado pelo fordismo exigiria uma nova postura revolucionária marcada pela tomada de posições culturais no seio de uma sociedade de massas através de estratégias mais eficientes como a do ataque pelo “consenso”, pela construção de uma “cultura comum aos trabalhadores” de forma que, antes mesmo de assumir o comando da máquina administrativa (Estado), os trabalhadores já exercessem a dominação não pela força burocrática, mas pela coerção cultural, ou seja, pelo exercício da “hegemonia”. E os “partidos políticos” teriam um papel fundamental na conquista dessa hegemonia, pois eles seriam uma espécie de “príncipe maquiavélico moderno”, ou seja, eles teriam a função de garantir a articulação dos interesses da classe trabalhadora e o exercício da gestão pública. Dessa forma resumida, a preocupação de Gramsci era tanto criticar aqueles que nos idos de 1930 eram chamados de “marxistas deterministas” como também propor uma leitura marxista adequada à sociedade industrial, burocrática e administrativa dos chamados países de primeiro mundo.

PALAVRÓRIOS E CONSPURCAÇÕES
Feito esse resumo, voltamos façamos às questões aos temas iniciais do artigo: que fatores foram os responsáveis pela manutenção da hegemonia do PSDB em São Paulo? Seriam as alianças políticas e as afinidades de interesses com as elites agroindustriais interioranas? Eles contemplariam a constante e forte adesão da classe média aos projetos tucanos apresentados até o presente momento? E ainda seria possível dizer que, dentre eles, estaria a eficiência na prestação dos serviços públicos dada a gerência privatizante que alinhava a história dessa hegemonia? Enfim, se esses são os fatores mais cogitados para tal hegemonia, então que propostas o Partido da Social Democracia Brasileira tem a oferecer em 2014 frente às recentes manifestações sociais e à crise hídrica que envolve a Cantareira?



Quanto ao Partido dos Trabalhadores, ele bate metas: arrecadou mais de R$ 50 milhões em doações nos últimos três anos e garantiu cerca de 8 mil novos filiados por mês no mesmo prazo. Em 2002, ano em que o ex-presidente Lula foi eleito, ele contava com 828 mil filiados e hoje o partido tem cerca de 1,6 milhão, ou seja, ele teve um aumento de 91% no número de filiados enquanto o aumento médio dos outros partidos foi de 36%. Resta saber como eles administrarão tamanha máquina partidária frente as desavenças internas entre Lula e Dilma pelo comando da campanha eleitoral. Além do fascínio que essa hidra partidária pode exercer sobre seus correligionários, o fundamental é saber se e o que eles ainda podem oferecer à administração do País. Antes de fechar o artigo, digo que só há uma coisa mais preocupante que o exercício dessas hegemonias: o fato de que o partido político que tem o maior número de filiados jovens é o Partido Progressista (PP), antiga ARENA. Uma nova hegemonia se anuncia?

Abraços,
Profábio.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

A nudez da política

Resumo: o propósito do artigo é provocar a seguinte questão: por que gostamos de desnudar a vida contemporânea?

PENSAR TEM PESO 
Sempre que tenho que abordar as perspectivas entre Sócrates e Platão em sala de aula, eu recorro à Hannah Arendt (1906-1975). Ela afirmava que, ainda no século vinte, "éramos capazes de pensar um pouco mais que Sócrates e ainda menos que Platão." O que me encanta no território arendtiano são suas considerações sobre a ação política e sobre como as distâncias entre aqueles filósofos possibilitaram a transformação da autoridade em despotismo. Ao conceber um ideal de cidade, Platão abre a possibilidade de divorciar o pensamento da ação política; afinal, a ideia de governo que, em Sócrates era institucionalizada pela dialética, pelo debate público, nele passa a envolver a administração das vontades dos outros por uma aristocracia. A força da dialética (o diálogo) passa, então, a ser traduzida pela dialética de forças (a violência).


Da mesma forma, quando penso em apresentar Aristóteles, eu me valho de Agamben (1942 - ), um italiano pensador do contemporâneo e nascido na mesma época em que Arendt tem seus direitos cassados pelos nazistas e, por isto, decide emigrar da França para os EUA. Existem algumas afinidades entre o pensamento de ambos, dentre elas a preocupação com os valores em torno da dignidade humana no mundo contemporâneo. Corro o risco inerente à didática ao afirmar que aquilo que Arendt chama de "condição humana" é o que Agamben chama de "vida nua": ambos conceitos são tentativas de compreender porque e de que maneiras naturalizamos, normalizamos e normatizamos a violência hoje em dia.

SORRIA, VOCÊ ESTÁ SENDO CAPTURADO
Dentre as muitas bobagens que vi e ouvi de colegas professores de Sociologia, está a de que o "o positivismo do século 19 pretende levar a sociedade de um estágio negativo para um estágio positivo (...)". Tamanha besteira não me permite estabelecer o hiperlink que a evidencia. O que importa é esclarecer que o conceito de "positivo", originalmente cristão, sofre transformações ao longo da Modernidade até ser compreendido como uma carga de normas, de regras, de ritos impostos aos rumos da História. Basta ler Hegel. Mas já que Hegel dá dores de cabeça, então leia Agamben em "O que é um dispositivo": ao menos as cefaleias serão mais requintadas.

É Foucault quem nos permite transitar de "positivo para dispositivo".  De tanto estudar loucura, marginais, ciências psicos e 'instituições-sequestros' (escolas, hospitais, clínicas psiquiátricas, internatos e baratos afins), este francês - contemporâneo de Agamben - nos legou a ideia de que "dispositivo é aquilo que captura", ou seja, os dispositivos são práticas e mecanismos que envolvem jogos imediatos de poder.

Portanto, quando você ouvir sobre "positivismo" e "dispositivos", preocupe-se: alguém está afim de regular, normatizar, educar, disciplinar, domesticar e adestrar seus pensamentos, desejos, intenções, corações, mentes e corpos em nome de determinados valores sociais. Costumam dizer que estes valores são ordem e segurança pública. Porém, é importante perceber que estes valores não são essenciais, ou seja, não são próprios, inerentes à dignidade humana: ao contrário, são determinações sociais, são construções históricas que, por sua vez, passam a querer nos dizer quem é digno de vida - ou não.


ZOÉ, BIOS E NUDEZ
Em "O que resta de Auschwitz", Agamben afirma: "a notícia atroz que os sobreviventes carregam dos campos para a terra dos seres humanos é precisamente a de que é possível perder a dignidade e a decência para além da imaginação, de que ainda há vida na degradação mais extrema (...)". Veja, o que está em questão não é somente Auschwitz, mas a base de Guantánamo, a guerra civil síria, as fronteiras de Tijuana, a praça Taksim, a praça Euromaidan, as ruas venezuelanas, a guerrilha no Mali, a favela da Maré.

Agamben desenvolve sua compreensão sobre política contemporânea a partir do que Aristóteles chamou de vida zoé e vida bios: a primeira é o território do espaço doméstico, a segunda o do espaço público. A vida zoé é o reino das necessidades, a vida bios é o reino das possibilidades. A vida zoé é patética, ela é marcada pelo pathos, pelo drama, pela ira e emocionalidade inerente aos instintos humanos. Dentro de casa, temos uma liberdade com os demais, um "jeito" de falar, um trato humano demasiadamente afetivo que atende aos nossos instintos de preservação e segurança, mas também compromete o nosso juízo e a nossa vida moral. Portanto, a vida zoé é animal, bruta, fisiológica e impulsiva: é o reino do "eu quero".

Ao contrário, porque somos todos animais políticos, ou seja, porque somos todos capazes de criar e compartilhar valores para a vida, não podemos levar a vida zoé para o espaço público: nele pouco importa o que queremos, mas sim o que podemos e o que devemos. Esta é a origem da vida bios, ela trata da realização do nosso potencial para uma vida boa, uma vida melhor qualificada. Esta qualificação da vida é o que chamamos de política e ela deve ser construída e realizada na Ágora, no espaço público, que é o território da celebração das diferenças e da definição de virtudes: é a satisfação do ethos (ética). Portanto, a vida bios é social, racional e dialética: é o reino do "eu posso, mas eu devo?"

PORQUE A NUDEZ NOS ENCANTA
Porém, como agir quando fazemos política para eliminar de determinadas pessoas a possibilidade delas fazerem política? Como nos comportarmos quando a nossa vida zoé trata de impor uma vida bios aos outros? O que devemos pensar quando aquilo que deveria ser um processo de qualificação da vida se torna um processo de extermínio da dignidade humana? E como ler imagens quando a diplomacia se torna um exercício de imposição de violência e de sacrifício de "zoés" por aqueles que se julgam "bios"?

Abraços,
Profábio.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

os três lados da moeda

Resumo: o artigo se propõe apresentar como são fabricadas as memórias em torno da ditadura militar.
*
Um dito popular nos informa que "recordar é viver". Leio-o com ceticismo, afinal a memória é, por natureza, seletiva: dentre suas funções está a de nos ajudar a esquecer as coisas - e não recordá-las. Não fosse assim, pense no seguinte exemplo: imagine-se aos vinte e um anos capaz de se lembrar e atualizar recordações de longas duas décadas... Seríamos uma espécie de "Benjamim Button", um paradoxo existencial, pois seríamos consciências velhas em corpos jovens! Então, retomo o raciocínio: recordar talvez não seja viver, e sim negar a vida presente, é resistir ao tempo. Recordar, portanto, é religar, é atualizar experiências, é retomar uma nova ação em busca de um outro tempo. Um tempo onde o passado passa.


Neste ano de 2014, o Brasil tem a chance de fazer o devido check-up de sua curta democracia: estamos prestes a celebrar o inédito sétimo ritual eleitoral e, além disso, de maneira muito oportuna, temos condições de ouvir nossos intelectuais discutir e qualificar o que foi o Regime Militar. Porém, a pergunta é importante: existem reais condições de um debate qualificado? Quais as reais chances de a caserna abrir e apurar seus arquivos? Com que cara devemos ler as insistentes declarações de "Continência a 1964" presentes na mídia? Se ontem  os conservadores estavam bem localizados à margem da sociedade devido à hegemonia cultural da esquerda, que conclusões nos são possíveis hoje frente aos depoimentos dos conservadores que ocupam a base governista brasileira junto com a chamada esquerda?!

Na tentativa de fugir dos ânimos pessoais assolaram o debate público sobre o 1964 nas últimas semanas, gostaria de registrar aqui alguns filmes que trazem à tona as tensões entre memória e história e esclarecem fatos importantes relativos ao Golpe Militar de 1964 e a consequente Ditadura Militar.

1º LADO: A MEMÓRIA SILENCIADA


Joaquim Pedro de Andrade apresenta aquele que talvez é o marco maior da obscenidade do regime militar: a morte e a negação da morte do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI. A estratégia fílmica de J.P.A é impactante, pois parte para as entrevistas determinando um grande close nas faces dos envolvidos no "caso Vlado". O rosto dos depoentes se tornam paisagens históricas feitas de realidade bruta. Nelas lemos peças de sentimentos do cárcere e identificamos as vozes que ficaras silenciadas décadas. Seguramente, este filme é uma obra maior do documentarismo brasileiro.

2º LADO - A MEMÓRIA MEDIADA



Ao tratar do sequestro de Charles Elbrick em 07/1969, Da-Rin se vale de um recurso potente nas entrevistas: ele apresenta vídeos de época aos envolvidos à medida que desenvolve seus encontros. Dessa forma, o que vemos além das confissões políticas sobre os eventos do sequestro, são justamente as reações espontâneas de alguns entrevistados frente às imagens de época. Elas demonstram como a memória funciona, como nos lembramos daquilo que queremos lembrar, ou melhor, como nós também determinamos o que e como queremos nos lembrar do passado. Enfim, é notável como as imagens de "guerrilheiro" e de "resistência à ditadura" são construídas diante de nós ao longo do filme.

3º LADO - A MEMÓRIA OBSCENA



Esta é para quem tem fôlego: a primeira parte do depoimento de Paulo Malhães à Comissão da Verdade. A partir de uma "lógica eichmanniana", ele logo aos cinco minutos, declara que "sendo militar, a ele não cabia ter escolhas, e sim seguir ordens (...) mesmo porque nunca chegou a pensar nisso (...)". Seguindo este raciocínio imoral, ele desfia sua formação militar, esclarece como "aprendeu a amar a pátria, sobretudo", responde sobre seus contemporâneos nos movimentos anticomunistas e avança rumo aos detalhes das práticas de tortura. Ele esclarece como decidiu "trabalhar no tempo" e, portanto, nunca deixou de "ser um estudioso": estudou técnicas militares norteamericanas e israelenses. Seu depoimento é das raras vozes confessionais que esclarecem as práticas de desumanidade que foram legitimadas e legalizadas pelo regime militar. A maldade se tornou funcional, ordinária e rotineira nas "Casas de Conveniência", os lugares onde se conquistam os presos para que se tornassem infiltrados. Ossos? "Podem esburacar o Brasil inteiro que não vão achar nada (...)"

*

CODA: RECORDAR É NÃO VIVER

Silvio Tendler encontrou militares que recusaram a lógica eichmanniana e aceitaram o convite para depor em "Militares que disseram não":


https://www.youtube.com/watch?v=7QyF3xNtfVE

Pode-se ver que recordar também é não querer viver o mesmo jamais.

Abraços,
Profábio.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A paz à brasileira

A proposta deste artigo é apresentar dois ou três filmes sobre as recentes manifestações sociais brasileiras Para tanto, faremos uma breve introdução teórica e depois que venham as especulações. A manchete que marca o portal do ESTADÃO de hoje é bem significativa do jogo de interesses envolvidos na tão esperada Copa do Mundo:


A notícia pode ser lida aqui e nos induz a crer no poder de persuasão desta entidade - que organiza, administra e arrecada os royalties dos eventos esportivos da Copa - sobre a Dilma (leia-se, Governo Federal Brasileiro). O que a FIFA e a Dilma pretendem é amenizar as tensões sociais - que ganham volume à medida que a Copa se aproxima - ao reforçarem os eventuais legados sociais do maior evento do ano. Então, partimos de um dado: a FIFA repousa à francesa à direita do ombro de Dilma. Resta reconhecer que ruídos ela ouve à esquerda.

ENTRE T.A.Z E OS BLACKBLOCKS
As ruas tendem a desmentir a FIFA: o que vemos é o aumento das manifestações, da pulverização dos atos de resistência civil e dos microcaos  provocados pela truculência do aparato da polícia militar brasileira.  As manifestações brasileiras soam como a cristalização da ideia da TAZ, isto é, zona autônoma temporária proposta por Bey nos anos 1980 e que passou a ganhar lastro na década seguinte com os diversos protestos mundiais contra a globalização. A proposta da noção da TAZ é, de certa forma, demonstrar que, no mundo contemporâneo, a sociedade civil consegue se deslocar independentemente da sociedade política, ou seja, chegamos num tal estágio de alienação das forças produtivas no capitalismo financeiro em que os indivíduos têm uma forte capacidade de autonomia. Em outras palavras, seria algo como "de tanto nos afastarem das reais forças produtivas e nos lançarem numa sociedade ritmada pelo mundo corporativo, é que hoje estamos soltos, de per si e afrouxados".

Oras, esta não seria uma fraqueza da sociedade civil, mas sim uma condição fundamental para determinar uma zona de atuação livre, autônoma, anárquica, de alto potencial criativo e contestário e, quem sabe, capaz de mobilizar - mesmo que seja como um efeito enxame - uma multidão em torno de reivindicações sociais! Disto resultam as perguntas: não seriam estas as condições oportunas para compreender os blackblocks? Não seria interessante pensá-los como um Sandman que arrasta correntes pelas noites de sonos eleitorais da presidente?

ENTRE A RUA E A CASA, A CONDIÇÃO BRASILEIRA
A tradição da sociologia brasileira é marcada pelas discussões em torno do "cruzamento de raças". Ops, quero dizer da "mestiçagem". Ainda não ficou bom... Melhor, da "mulatização". Em outras palavras, da "miscigenação". Enfim, do "multiculturalismo"! Qualquer que seja o nome que se dê para a condição (não seriam condições?) étnicas da sociedade brasileira, o passo sempre foi o mesmo: tentar compreender a cabeça, o corpo, o bolso, o desejo e a sexualidade do 'povo brasileiro' à luz das chaves interpretativas da trinca "antropologia-etnografia-política". Desde o IHGB até Roberto Da Matta (para ficar no mais recorrentes nos vestibulares), as questões culturais eram o "samba de uma nota só" dos pensamento sociológico brasileiro. A partir da década de 1990, deixamos o samba. E passamos a ter que ouvir o funk: e com razão.

O avanço da cartilha neoliberal sob o Governo FHC e, por extensão, ao longo do Governo Lula, o povo brasileiro assistiu a três cenas marcantes em busca de um "happy end": a estabilização da moeda; o aumento real do poder aquisitivo do salário e a extensão popular do crédito. Entretanto, apesar de acompanharmos todo este filme, ainda carecemos de um "happy end": e o combate à corrupção? E os investimentos públicos em saúde-educação-segurança pública? E a eficiência dos transportes públicos? Enfim, é nós, contribuintes da onívora máquina fiscal tupiniquim? 

Então, não seria o filme "Sob 0,20", produzido pela MUDA, um excelente retrato das mazelas vividas pela sociedade brasileira contemporânea?* 


A GUERRA E O EXERCÍCIO DE PAZ À BRASILEIRA
As condições brasileiras sob protestos deixam tanto o Governo quanto às mídias em alerta. Todo acontecimento se torna "monstruoso", no sentido de que todo e qualquer fato passa a ser noticiado, veiculado, espetacularizado e potencializado em escala internacional. Oras, não estariam até mesmo os franceses preocupados com os rolezinhos? Em suma, o que também está em jogo é que, atualmente, nos é impossível distinguir o fato, a mídia e a veiculação do fato. Em outras palavras, tudo é registrado, documentado, fotografado, filmado, agenciado, veiculado, "streamed" e internacionalizado: o cotidiano quer deixar de ser dia a dia para se tornar histórico.

Para encerrar o artigo, vejo que o filme "Com Vandalismo" aponta com precisão a falta de foco da sociedade brasileira, imprecisão política de nossos políticos e a perdição moral em que as PM's se encontram. Quando a sociedade civil se torna uma máquina de guerra (vide pág. 33) operosa, ameaçadora, deslizante e com um artilharia incerta, qualquer um é alvo, qualquer cabeça vai a prêmio. Dentre os méritos do filme, eu destacaria aquilo que também é chamado de "camerawar": o filme que vemos é feito em tempo real: o som é precário porque a realidade é precária; a imagem é ruim, porque as personagens são humanas, portanto inseguras, instáveis; e a qualidade do filme é desequilibrada, porque todo acontecimento é uma abertura de expectativas.


Vemos que estes três filmes compõem um mosaico bem consequente para compreender as ruas brasileiras.

*PS: [Tenho a impressão de que o filme demonstra muitas das contradições da sociedade brasileira e, dentre todos os méritos que o filme possa ter, ainda me incomoda uma pergunta: o filme é sobre quem? Sobre as ruas? Sobre o Brasil? Sobre o jovem da classe média? Sobre a Universidade de São Paulo? Enfim, o que este filme quer dizer?]

Abraços e um ótimo 2014!
Fábio Monteiro