segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

pequeno príncipe, grande império

"(...) Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo (...)"

Há 70 anos, ao se refugiar da 2º Guerra Mundial em Nova York, o piloto e escritor francês Antoine de Saint-Exupéry escreveu aquela que foi sua obra-prima "O Pequeno Príncipe" e que compõe a lista dos livros mais vendidos em mais de 200 edições mundo afora. Para além da média humana, estes setenta anos foram generosos com o "Pequeno Príncipe" posto que há unanimidades e consensos em torno da obra desde os célebres existencialistas que nela viram um ser bem acabado que "não somente existe, mas que se define" até a atualíssima advogada Juliana Cavalcante, 22, que afirmou a importância da obra em sua biografia rumo ao título de Miss Brasil 2012.




“Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.”



Mas além de o livro ser  "uma parábola em forma de conto que coloca em xeque o ponto de vista racional dos adultos" - conforme afirma a biografia disponível no "uol educação" - também pode ser lida como uma das expressões mais sutis e eficientes de imperialismo, a saber o eurocentrismo. Vejamos: ok, o livro é uma "parábola" e como toda parábola ele encerra lições de moralismo, ou seja, traz em si funções doutrinárias como o narcisismo e o auto-questionamento que levou aquelas cabeças existencialistas da primeira metade do século 20 a verem no livro um exemplo de postura de enfrentamento ético e conduta  moderna frente à tecnicização do mundo à época.

Ainda, diz a biografia que "seus romances (...) transmitem uma filosofia de vida que pretende melhorar as relações entre as pessoas, mediante a utilização ética da técnica, além de exaltar a amizade e a fraternidade, que conduzirão até o auto sacrifício, se necessário". Primeiro, é de se perguntar quem domina a técnica no enredo no livro? Por extensão, quem a domina na década de 1940 quando ele foi lançado: os alemães e seus canhões? O Eixo? Os Aliados que foram lenientes com o avanço nazista num primeiro momento para depois combatê-lo? Seriam os países francófonos do Sahel que ofereceram corpos, mulheres, mantimentos e paisagens para a 2º Grande Guerra? Segundo, se lemos ali intenções de auto sacrifício, então como parábola ela traduz valores cristãos. Nada contra, nem mesmo a favor se não avançarmos no entrincheiramento do território afetivo da obra.

Afirmar que o livro "coloca em xeque o ponto de vista racional dos adultos" é discutível porque, se assim o faz, é para de maneira bastante racional e sistemática afirmar a hegemonia branca europeia sobre o hemisfério sul personalizado no livro como o baobá, tradicional símbolo africano, totem no qual orbita o imaginário das culturas populares africanas.


"O solo do planeta estava infestado. E um baobá, se a gente custa a descobri-lo, nunca mais se livra dele. (...) o planeta é pequeno e os baobás numerosos, o planeta acaba rachando. Meninos! Cuidado com os baobás!"

Eis o ponto da questão: existe aqui uma falsa lógica, um sofisma: porque o planeta é pequeno, devemos emular e participar afetivamente do desenraizamento dos baobás. Isto porque, como bem defendia o poeta brasileiro Diógenes da Cunha, os baobás são símbolos de ancestralidade africana, são os hotéis de lendas, causos e folclores africanos. Além disso, está entre as maiores árvores do mundo, sendo milenário abrigo de uma vasta  biodiversidade. Não bastasse isso, ele também - como já apontava o folclorista Câmara Cascudo e o incansável Prof. Waldman/ USP não cessa de dizer em suas aulas sensacionais - é a própria materialização de uma das parábolas mais contundentes sobre modéstia e generosidade:

"Sendo belo, forte e vigoroso, o baobá vivia pela floresta a se gabar de sua vaidade irritando as outras árvores. Os deuses bem que o avisaram e pediram que parassem com todo este egoísmo, caso contrário seria punido. E não deu outra: depois de tanto avisar, o baobá sofreu uma terrível punição: foi virado de cabeça para baixo. E hoje, o que vemos, são suas raízes."

Esta é a lenda em torno do baobá, árvore mítica e sagrada, que simboliza as heranças orais de diversos povos africanos, que encarna o imaginário e a força vital dos griots e que resiste ao tempo pela sua beleza e grandeza.

"Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós."

Enfim, nos parece que seria possível ler o pequeno príncipe, na verdade, como exercício de um grande império. O livro feito parábola enseja valores humanistas à revelia do respeito pelas diferenças. Sendo mais literal, talvez se assim o faz é pelo viés da defesa dos valores humanistas brancos, europeus e belicistas, posto que grande parte da obra de A.S.E é marcada pela sua atividade profissional. Além disso, quando A.S.E. afirma que "o essencial é invisível aos olhos", talvez queira nos dizer, assim como Hegel, que a África não deve constar na História posto que não é civilizada. Ou então, sendo ainda mais literal, talvez A.S.E até mesmo considere uma história para este continente, mas desde que seja personalizada como baobás "terríveis", feito peste que "infesta", árvores dignas de um cuidado às avessas.

*

Se a pergunta é "qual a atualidade que há nisto tudo", perguntemos à África francófona - isto é, ao Mali, Burquina Faso, Argélia, Costa do Marfim, Senegal, Mauritânia, Marrocos, Tunísia, Togo, Camarões, Gabão, Guiné Equatorial, Chade, Níger, República Centro-Africana etc - e aos seus mais de 350 milhões de falantes: qual parábola eles preferem?

Abraços!
Fábio

domingo, 13 de janeiro de 2013

nixon no século vinte e um

Uma breve biografia
Nesta semana passada foi lembrado o centenário de nascimento de Richard Milhous Nixon. O "Presidente de Watergate" ou o "Falcão do Vietnã" se formou em Direito, serviu a Marinha e participou de missões no Pacífico Sul na 2º Guerra. Republicano, venceu sua primeira eleição em 1946 e em 1950 chega ao Senado.


O Falcão Nixon
Em 1960, Nixon disputa a presidência com o John Fitzgerald Kennedy sob o calor comunista da Frente de Libertação Nacional sobre o sul do Vietnã. Nixon perde as eleições para o carismático JFK numa campanha marcada por debates televisionados que geram um novo tipo de cidadão, o telespectador político. Quanto a JFK, ele fica para um próximo post.

Nixon volta à cena política vitorioso nas eleições presidenciais de 1968 e para ser reeleito em novembro 1972, desta vez para colocar um ponto final à Guerra do Vietnã. Apesar da reeleição, certamente o nome de Nixon não figura nas recorrentes listas de "Top Ten American Presidents", pois embora historicamente tenha sido um bom governo, ele foi maculado pelo "Caso Watergate".

O governo republicano de Nixon foi também ao mesmo tempo moderno, democrata e trágico. Pôs fim ao conflito no Vietnã que liquidava 300 ianques por dia e acabou com o serviço militar obrigatório. Anticomunista, estabeleceu relações diplomáticas com a China (o PCC que o agradeça pelo seu imperialismo contemporâneo) e com isto estimulou a 'détente' com a URSS aprovando parcerias em programas espaciais como o Apollo-Soyuz. Considerado antissemita pela opinião pública, fez do literalmente assombroso Henry Kissinger o homem forte de seu governo. Mesmo sendo republicano, criou a Agência de Proteção ao Ambiente (ouviram, Bushólatras?). Além disso, foi Nixon quem implantou o Plano Filadélfia (1969), marco sociopolítico daquelas que são consideradas as  primeiras leis de ação afirmativa que trataram de amenizar a segregação racial no mercado de trabalho . Enfim, o próprio Noam Chomsky chegou a afirmar que Nixon, hoje em dia, seria um defensor inveterado da causa verde.

Words, Swords and Watergate
Em 1651, o anglicano Thomas Hobbes, sob o calor da  Guerra Civil Inglesa, publicou sua obra-prima política o “Leviatã”. Dentre outras coisas, nela afirmava que ao soberano cabe usar o poder da espada quando o poder da palavra não tiver mais eficácia. Disto resultou a famosa sentença "swords vs words" que, quando traduzida em bom português tropical, refere-se à ética coronel-clientelista do "manda-quem-pode-obedece-quem-tem-juízo".

Em junho de 1972, cinco homens foram presos nos escritórios do Partido Democrata no condomínio Watergate em Washington tentando colocar escutas telefônicas. Aquele era o ano eleitoral que deu à reeleição a Nixon. Porém, ela foi conquistada à moda neohobbesiana, posto que após dois anos de investigação, a imprensa revelou que Nixon sabia da invasão de Watergate e agiu para encobrir os crimes políticos. Isto é, apesar da alta aprovação política e da larga vantagem nas eleições, Nixon não resistiu à tentação e irmanou-se com atos escusos a fim de garantir a continuação de sua governabilidade. Aliás, "governabilidade" foi um termo desenvolvido pela casta do homo politicus brasiliensis no início do século vinte e um sob o calor do Mensalão, o nosso Watergate.

Depois disso, a Câmara aprovou aprovou artigo que permitia seu impeachment, mas foi em 08 de agosto de 1972 que Richard Nixon se tornou o primeiro -e, por enquanto o único - presidente a renunciar ao cargo.

Nixon em Hollywood
Dentre os filmes que tratam do tema, temos:
"Nixon", 1995 de Oliver Stone que aborda a biografia de Richard à moda stoniana: a vida feita de polêmicas e contradições.
#Frost/ Nixon", 2009 de Ron Howard que trata da famosa entrevista de Nixon ao jornalista britânico Frost três anos após a renúncia;
#"A Conversação", 1974 de Francis Coppola que trata de espionagem, política  e traição numa alusão ao caso Watergate.

Abraços!
Fábio

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

as femens e suas sementes


"Slut Walk": Eis o nome de um movimento social contemporâneo que tem reverberado cada vez mais mundo afora. O nome ganhou força "a contrapelo", isto é, após uma série de abusos e assédios sexuais em meados de abril de 2011 na Universidade de Toronto, certo policial afirmou publicamente que eles não ocorreriam "caso as mulheres não se vestissem como 'sluts', ou seja, vadias". Daí para as ruas, e do Canadá para o mundo foi um átimo de  tempo. Desde então, o movimento social tem ganhado adeptas, repercussão e vigor desde São Paulo até a Ucrânia onde, talvez, esteja o 'núcleo-duro' sob o comando da a organização Femen.

Quando notamos a política do movimento, vemos que sua causa é múltipla, assim como suas reivindicações são multidirecionais: o fim do machismo, a luta pelo aborto, a defesa da autodeterminação e da autodefinição, a reavaliação dos códigos morais como a defesa do homossexualismo e dos padrões estéticos através da negação das roupas dentre outras coisas.

O importante aqui, ao meu ver, é uma certa atualização do imaginário de 'maio de 68', daquilo que ele apresentou de lúdico, de intenso e de potencial transformador. Portanto, vamos por partes:

1º - Do lúdico: ambos movimentos, tanto o "maio de 68" quanto o "abril de 2011" trouxeram o corpo à tona, literalmente deram corporeidade à luz social, pois foi nos 1960 que os corpos femininos serviram de dispositivos políticos e ideológicos para questionar os valores familiares e patriarcais quebrando a hegemonia das tradições envolvidas no "pater familias". Da mesma forma, nota-se hoje em dia que não é o verbo, não é a palavra e não basta o "cogito ergo sum" (deu pra ti, Descartes!) para se fazer valer na política: ela se faz com imagens, com pernas pintadas a batom, com os colos coloridos a rabisco (vide Q03 do Caderno Azul do caderno azul do ENEM 2011), com os seios à mostra e com o ventre em evidência.

2º - Da intensidade: foi notável a importância das contradições da guerra fria  na integração de diferentes demandas em jogo nos anos 60, a saber, a das mulheres (emancipar-se do homem), a dos jovens (emancipar-se do pai) e a de uma classe média cansada (emancipar-se da dupla Nixon-Vietnã). Tudo isto potencializou e fundiu os diferentes protestos sociais em uma grande Marcha rumo a Washington em 1963. De certa maneira, as "Slut Walks" se esforçam em evocar tais feitos e efeitos, porém através de diferentes demandas. E isto nos leva ao terceiro ponto.

3º - Do potencial transformador: o que desejam as slut walks? E como desejam o que desejam? Como elas pensam em conquistar o carisma, a simpatia da opinião pública? Elas estão preocupadas com esta opinião desde que é pública, portanto quiçá machista? Como conciliar exigências de direitos sociais e políticos ligados aos gêneros e à sexualidade com tamanha exposição, vulnerabilidade e corpolatria? Aliás, elas consideram-se expostas e corpólatras? Ainda antes: é possível levantar juízos de valor como estes frente às muitas e difusas formas de opressão masculinas vigentes no cotidiano de forma cega, surda e muda? Quantas indianas mais seriam necessárias para conferir volume à pluralidade de vozes femininas que vivem omissas em si mesmas? Ou ainda, quantas legislações como a maria da penha são necessárias para uma sociedade feita de jair bolsonaros?

*

A título de conclusão, registro aqui uma questão que caracteriza a prova de Humanas da popularmente conhecida "Prova do Barro Branco":


A "Prova do Barro Branco" seleciona os candidatos para a Academia do Barro Branco visando à  formação de oficiais da Polícia Militar do Estado de São Paulo. (gabarito: "C")

Abraços,
Fábio

domingo, 6 de janeiro de 2013

Lura, Sara e Kiwanuka na minha rádio


Para começar este novo blog, optei pela música africana que marcou o meu dia a dia neste recesso de transição de dois mil doze para o treze. A referência que posto aqui é um infográfico publicado pela FOLHA em meados de outubro/ 2012. O panorama oferecido é bem interessante porque procura localizar as principais performances do continente. O Mulatu Astake com sua sonoridade introspectiva; o multi-instrumentista Fela Kuti (peça-chave nesta seara transatlântica contemporânea posto que, além de músico, foi um grande agitador político contra a opressão eurocêntrica) que afirmava que "subia ao palco não só para cantar, mas para também falar/ protestar". E haja fôlego entre suas composições de dezenas de minutos!

Além disso, vemos aí algumas vozes femininas que reverberam um metiê clássico, no bom sentido. Aliás, 'clássico' é o sentido que as 'divas' afroamericanas imprimiram ao blues e ao jazz definindo estes estilos com seus scats, improvisos vocais e seus lirismos sonoros graduados por diferentes doses etílicas. Percebe-se, então, aqui entre elas, que a África prática uma 'contra-diáspora', ou seja, são as artistas africanas que recorrem às suas pares lá na América do Norte em busca de elementos que chancelem suas originalidades em busca de mercado.

Ainda recomendaria artistas como "Lura", "Sara Tavares" e "Michael Kiwanuka". Estes são frutos das "biografias diaspóricas" típicas deste mondocontemporâneo. Isto é, tanto Lura quanto Sara são portuguesas, mas têm ascendência caboverdiana, sendo assim, aposto um bom corte de tecido africano com quem me der uma definição convincente de seus sons! Originais, suas sonoridades escapam de obviedades e nos remetem pra lá nos mil e quinhentos quando estas mesmas ilhas serviram como referência diplomática internacional para o tal Tratado de Tordesilhas. Já o inglês Kiwanuka é filho de ugandenses exilados de Idi Amin Dada - sim o próprio retratado no filme "O Último Rei da Escócia".

São 'biografias diaspóricas' porque suas trajetórias pessoais e musicais atravessam tanto as fronteiras nacionais, geográficas quanto estéticas. As vidas "luso-caboverdianas" delas e a vida "anglo-ugandense" dele nos exigem leituras de diferentes realidades históricas, assim como suas músicas nos remetem para diferentes direções: seja rumo aos lamentos do blues, aos nuances jazzísticos e às texturas telúricas de suas áfricas, estamos todos envolvidos num intenso jogo dinâmico entre estas memórias afetivas.

Abraços!
Fábio