domingo, 5 de julho de 2015

Cinco atualidades para julho de 2015

RESUMO: o artigo pretende apresentar cinco efemérides para os vestibulares de 2015 e suas respectivas abordagens. A apresentação segue em ordem cronológica por mera questão didática.

1915 E O HOLOCAUSTO ARMÊNIO
Ao longo do ano houve um intenso debate a respeito da qualificação histórica dos impactos da Primeira Grande Guerra sobre o povo armênio. Ainda hoje, o tema é um tabu europeu. Como exemplo disso, pode-se destacar a forma como a Turquia se refere ao assunto qualificando-o como um "deslocamento populacional" quando, por outro lado, há o reconhecimento internacional de como os armênios foram massacrados no contexto da Guerra. Uma forma de conhecer melhor o debate é a produção britânica "Holocausto Oculto". Apesar da qualidade do vídeo não ser das melhores, o seu discurso expositivo rende uma boa aula sobre o assunto.


1945 E A LIBERTAÇÃO DE AUSCHWITZ
Se as imagens sobre o holocausto armênio são raras, por seu turno a questão judaica sempre obteve do cinema um tratamento diferente. O que os nazistas designaram como "solução final" nos chegou através de diversos registros como os diários de Anne Frank, das memórias de Primo Levi e de fortes imagens como estas a seguir, que chegaram a passar pelas mãos de Hitchcock. O diretor inglês chegou a ser convidado para contribuir com a produção de um documentário a respeito das atrocidades nazifascistas no pós-guerra. A ideia era produzir um filme propaganda da vitória aliada. Entretanto, devido ao peso histórico das imagens, o projeto foi deixado de lado. Recentemente, as imagens receberam um novo tratamento dentro do filme "Night Will Fall". Trata-se de um filme que separa os fãs de Spielberg dos fãs de História.


1975 E O THATCHERISMO
Margareth nasceu em outubro de 1925. Aos 50, ela foi eleita líder do Partido Conservador - a primeira mulher de comando dessa estatura política. Uma vez no comando dos conservadores, ela tratou avançar com o receituário político e econômico que veio a ser chamado de neoliberalismo. Para quem busca entretenimento, eis "A Dama de Ferro", ainda disponível no youtube. Vale dizer: o filme não substitui a leitura de bons autores conservadores...


1975 E A PERMANÊNCIA DE "VLADOS"

Como se sabe, os temas em torno da ditadura militar são permanentes nos vestibulares brasileiros... Especialmente em datas traumáticas, a exemplo da morte de Vlado Herzog, assassinado nos porões da rua Tutoia em outubro de 1975. O filme de Joaquim foi realizado em 2005, e como se pode ver, infelizmente, muitos dos temas aí apresentados ainda estão presentes no atual debate político.


1985 E A REDEMOCRATIZAÇÃO
Enfim, como não indicar algo do "Sr. Constituinte"? Afinal, o cinema brasileiro mostra indiferença quanto ao período de redemocratização do país. São raríssimos os filmes que recortam esse momento histórico... Para aqueles que se aventuram nos torrents, eu recomendaria uma pesquisa sobre uma estreia deste 2015 chamada "Depois da Chuva". Agora, quem estiver a fim de estudo sério, vamos ao que interessa: Ulysses Guimarães no Roda Viva.


Bom, por ora é isso. Penso que temos o suficiente para as férias de julho de 2015!
No mais, abraços fortes e boas sessões!
Profábio

CODA: 1915 E O BOXEADOR
Em 1915, Chaplin já tinha reputação suficiente para ser proprietário de suas películas e ousar na criatividade. "The Champion" (O Boxeador) é uma boa referência para pensarmos como houve um tempo em que o esporte era somente uma forma de trabalho e o humor uma forma de enobrecer a vida.

Cursos de Extensão de Humanas


Filosofia, arte e política são as novas áreas de atuação dos professores do Instituto Alpha Lumen. O Instituto inaugura mais uma iniciativa pioneira na cidade ao oferecer cursos de extensão acadêmica focados nas áreas de Artes e Humanidades.

Com uma equipe de jovens professores com experiências internacionais, os cursos são de curta duração, envolvem debates sobre questões contemporâneas e têm como objetivo ir além das fronteiras universitárias e trazer ao grande público a importância e a atualidade de questões acadêmicas.


Um exemplo é o curso de Filosofia “História, verdade e poder em Foucault”, que tem como meta demonstrar as linhas de força que atravessam a ideia de biopoder e suas relações com as dinâmicas cotidianas de nossa vida pós-moderna. Ainda na área da política, o curso “teorias contemporâneas de relações internacionais” tem como enfoque o debate de conceitos como guerra, cooperação e segurança em mundo marcada cada vez mais pelas assimetrias diplomáticas.
 
Quanto aos cursos de Artes, os cursos oferecidos são voltados aos estudos da fotografia e do cinema documentário. Tendo como título “olhares estrangeiros”, o curso de fotografia apresenta a trajetória de diversos fotógrafos viajantes no Brasil a fim de debater noções como alteridade e cultura. Já o curso “documentarismo contemporâneo” trata de analisar a boa fase do cinema documentário latino-americano.
 
Todos os cursos são desdobramentos de recentes pesquisas acadêmicas e oferecem material didático exclusivo para o acompanhamento das aulas.


Participe. Seja mais humanas e conheça pessoas novas. As aulas são aos sábados. E as vagas, limitadas.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

O Liberalismo e a UNESP

RESUMO
“A ideologia é uma expressão política das tensões econômicas”. Para um bom marxista, todos os objetos, produtos e mercadorias de nossa sociedade de consumo seriam carregados de significados e valores que expressam tanto as nossa relações materiais e econômicas como também as tensões sociais, as disputas políticas, enfim os jogos de poder nelas envolvidos. Em outras palavras, “ideologia” é um conjunto de valores e princípios que estão embutidos nos produtos que consumimos.

Sendo assim, seria interessante propor algumas questões como: e os vestibulares? Eles também promovem ideologias? Sendo concursos públicos, eles deveriam zelar por aquilo que chamamos de “imparcialidade”? E se eles estão ‘carregados’ de ideologia, seria possível detectá-las através da análise de suas questões? Bem, sendo assim vamos nos arriscar na comparação de duas questões da Unesp que nos parecem envolver valores afins.

PONDÉ E O ELOGIO AO ERRO
Pra começar, vamos levar em consideração uma grande conquista dos estudos linguísticos ao longo do século 20: a língua não é um instrumento neutro. Isto é, toda vez que falamos alguma coisa, nós desempacotamos um conjunto de valores, referências, princípios, significados e sentidos que dizem muito não só sobre nós, mas também sobre as nossas experiências sociais.

Certo, isto pode até nos soar como um “senso comum”, algo trivial para nós hoje em dia. Entretanto, se está claro que os nossos discursos dizem muito a respeito de nós, talvez as palavras que o compõem não tragam a mesma clareza. Explico: as próprias palavras, as suas inflexões e os tons que as colorem trazem consigo uma forte carga de sentidos culturais e políticos que podem revelar as tensões sociais/ jogos de poder de um determinado momento e contexto. Oras, há quem advogue que “homossexualidade” é algo distinto de “homoafetividade”. Há quem lute na afirmação de que “negro” não tem o mesmo sentido que “afrodescendente”. Nesta toada, “índios” não existem, mas sim “povos nativos”. Perceba que, muitas vezes, as palavras podem ser um enxame de equívocos.

Essas nossas provocações vão de encontro com o que se chama de politicamente correto, um termo que ganhou musculatura nos atritos entre a direita e a esquerda norte-americana nos anos 1980. De um lado, o avanço dos estudos multiculturalistas nas universidade ianques tratavam de descontruir as noções de subalternidade que envolviam raça, gênero, orientação sexual e nacionalidades. Por sua vez, a direita enfrentava este páreo denunciando esses estudos como uma forma de “patrulhamento ideológico” ou de “higienização de hábitos e costumes.” Ou seja preconceitos contra preconceitos.

Nós aqui no Brasil, aprendemos a lidar com essas coisas agora, há pouco tempo, ao longo da última década. Aqui a polarização se deu entre aqueles que defendem o direito de todos terem TV a cabo e aqueles que dizem que os aeroportos se tornaram rodoviárias. Isto é, os primeiros aplaudiam personagens como a “Lady Kate” e consideravam “certo” escrever como se fala. Já os outros sentem saudades de “Caco Antibes” que gritava de suas alturas ter “horror a pobres”.

Uma forma de analisarmos esta polêmica está na questão 58 da Unesp de 17/11/2013. A conclusão é a seguinte: pode-se dizer que, ao defender um Estado mínimo, o autor também defende a possibilidade de nós errarmos por nossa conta e risco. Ou seja, a preocupação aqui é que o indivíduo seja capaz de assumir as responsabilidades pelos seus próprios erros e acertos. E quanto mais ele for capaz de errar por conta própria, melhor a sociedade para todos porque cada um tomará conta de sua própria vida.

“VEJA” O ELOGIO À INDIVIDUALIDADE

Por sua vez, a nossa segunda questão, embora aborde um tema diferente, tem um pano de fundo semelhante. Logo de cara, o enunciado nos traz dois autores britânicos do século 19: Bentham e Mill. Como um bom britânico do século 19, eles eram liberais e deram um passo além: fundaram a ética utilitarista. Vejamos: primeiro como liberais, eles não enxergam a sociedade como um conjunto social, como um grupo coletivo; ao contrário, para eles a sociedade é um grupo de indivíduos proprietários. Agora, como utilitaristas, a preocupação deles está na utilidade social de cada indivíduo.

Vejamos, analisar a utilidade de alguma coisa implica em analisar o que está fora dela, as suas consequências, os seus efeitos. Sendo assim, poderíamos cogitar que uma pessoa ética é aquela que bate metas, cumpre aquilo que se propõe. Estudar liberalismo gabaritar a filosofia da Unesp. Calma porque o utilitarismo vai um pouco além disso, porque o que importa aqui são os outros. A felicidade e o bem-estar dos outros. Ou seja, você gabarita a Unesp, mas para se tornar um ótimo engenheiro para a sociedade. O fundamental para os utilitaristas é o que você faz de você para a sociedade. Perceba na questão 58 é da Unesp de 25/05/2014.

A leitura da questão evidencia os impactos sociais de um Estado assistencialista: com o propósito de proteger minorias étnicas e inclui-las socialmente, o Governo compromete a utilidade social não só da terra como também do trabalho daqueles economicamente viáveis.

Em outras palavras, para um raciocínio liberal utilitarista, a coisa funciona da seguinte maneira: no afã de ajustar desigualdades econômicas históricas, o Governo só faz reforçar e perpetuar essas mesmas desigualdades econômicas ao impedir que os mais aptos deem conta do recado. Isto é, da terra. Além disso, mesmo a intenção de reparar culturalmente a etnicidade dos povos nativos, ele só faz reforçar e perpetuar a marginalização deles porque demonstra que eles são incapazes de tornar a terra economicamente viável.

CONCLUSÃO
Pra fechar, pode-se perceber que ambas questões tem o mesmo princípio filosófico: o liberalismo. Sendo que na primeira, o liberalismo é uma forma de criticar o avanço das mãos nada invisíveis do Governo que tentam promover, disciplinar e adestrar hábitos e comportamentos como “certos” e “corretos” e aceitos socialmente. E o “kit gay” do Haddad que o diga. Por sua vez, na segunda questão o liberalismo em sua vertente utilitarista é o argumento utilizado para demonstrar as mesmas mãos nada invisíveis do Governo que, ao tentar corrigir ‘distorções históricas’, na verdade só a aprofundam.

Enfim, apesar de a primeira questão ter um apelo cultura e a segunda ter um apelo econômico, em ambas é possível detectar a presença do liberalismo. Ou seja, a proposta em ambas é a seguinte: o bem –estar social é uma coisa que cada um inventa pra si mesmo. E, inventando-o para si mesmo, cada um contribuiria de maneira significativa para todos. Afinal, nada melhor do que cada um tomar conta de sua própria vida.

Abraços!

Profábio.

O capital e o trabalho no ENEM

RESUMO
"Não existe almoço de graça”, dizem os conservadores. Essa famosa sentença tem conquistado cada vez mais relevo no debate político brasileiro contemporâneo, pois de certa forma ela serve para balizar quem se propõe à esquerda/ progressista e à direita/ conservadora. Veja, há quem pense que uma das funções do Governo seria o combate às desigualdades sociais através de medidas assistencialistas. Para esses, o almoço nosso de cada dia seria pelo menos mais barato, afinal apoiariam uma forma de Estado de Bem-Estar Social. Por outro lado, há outros que pensam que ao Governo caberia tão somente a aplicação da leis e a manutenção da ordem, afinal as desigualdades entre nós deveria ser resolvida através da livre iniciativa, ou seja, através do reino das oportunidades do livre mercado.

Oras, uma vez que para se haver um bom debate, uma boa disputa teórica é preciso que haja ao menos um ponto de convergência – pois, sem ele não haveria discordância! – logo de início uma questão se impõe a nós: o que exatamente estaria em jogo quando se afirma que não há almoço gratuito? Não seria interessante pensar que, no fundo, ela nos leve a questionar o que é o trabalho?


ESCLARECIMENTO É LIBERALISMO
“Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade”, eis a famosa citação kantiana que ecoa pelos vestibulares. É, mas o tal do Esclarecimento foi um pouco além da defesa da autonomia moral do indivíduo e também inventou a sociedade comercial como o seu fundamento. Como se sabe, Locke e seus colegas esclarecidos afirmavam que existiria um “estado de natureza” no qual nos são atribuídas propriedades privadas que deveriam ser mantidas num “estado de sociedade”. Ou seja, de modo geral, os contratualistas creditavam o surgimento da sociedade civil à necessidade de proteção de valores individuais como “o meu tempo, a minha dedicação, o meu trabalho e seus frutos, isto é: a minha riqueza”.

Desta forma, as desigualdades de nossa vida em sociedade seriam, então, uma extensão de nossas desigualdades naturais: uma vez que todos somos livres para explorarmos nossos potenciais e talentos, a partir de agora é cada um por si e o livre mercado para todos: ele seria o reino das oportunidades! Portanto, a sua fome vai de encontro às batatas do vizinho porque elas são melhores e mais saudáveis, são uma melhor oferta. A tua satisfação vai de encontro com a satisfação dele. Nada melhor do que isso, afinal além de produzir riquezas, o livre mercado produz virtudes!

Entretanto, não é muito bem assim que pensa o nosso E-N-E-M... Pois nele podemos encontrar leituras mais realistas que envolvem critérios econômicos, sociais e políticos: o ENEM nos promove interpretações marxistas a respeito da história do trabalho. E como sabemos, (em termos de vestibular) Marx se apresenta para nós como um crítico da noção liberal do trabalho. Se para os liberais o trabalho enobrece porque através dele eu me torno socialmente útil, para Marx essa sentença é, antes de tudo, uma questão ideológica que camufla, que esconde, que oculta algo fundamental: o predomínio do capital sobre o trabalho, isto é, o fato de que o trabalho é uma mercadoria que produz mercadorias. E quando o trabalho está em jogo entre as quatro linhas do ENEM, ninguém melhor do que Marx para a escalação. Nesse sentido, devemos estar preparados para questões do tipo: “qual os impactos do assalariamento sobre o trabalho? Quais os efeitos da separação entre o trabalhador e os meios de produção? O assalariamento envolve estritamente relações de poder econômico ou também relações de poder político e cultural?” Temos adiante um estudo comparativo entre duas questões que envolvem o tema “trabalho”. Sim, existem várias, mas optamos por estas devido ao apelo de seus autores.

THOMPSON E O CREPÚSCULO DO SÉCULO 18
A primeira questão traz “A formação da classe operária”, do marxista inglês Edward Palmer Thompson expresso na questão 67 do Caderno Azul do ENEM/2009 cujo enunciado afirma:


Thompson é um dos maiores nomes do chamado marxismo cultural e atuou junto com Raymond Williams e Eric Hobsbawm na New Left Review, uma importante revista que aliou marxismo e estudos culturais a partir dosanos 1950 na Inglaterra. Dentre as suas propostas, estava a de compreender os hábitos e costumes dos trabalhadores/as como formas de resistência social. Para eles, a cultura seria um modo de produção. Em outras palavras, o importante para esses autores seria detectar e compreender como as tensões políticas e econômicas se expressam também através das práticas culturais.

Nota-se que a sugestão da letra “D” como gabarito indica como o regime de assalariamento opera uma decadência da qualidade cultural do trabalho, isto é: até o fim do século 18, aos fazendeiros seria possível dominar não somente práticas agrícolas de subsistência como também o regime fabril tecelão. Aliando ambas atividades, eles detinham não somente a autonomia de seus meios de produção como também obtinham prestígio social. Entretanto, o advento do assalariamento não somente apartou o trabalhador dos meios de vida como também generalizou a mão de obra de tal forma que potencializou seu anonimato.

SENNETT E O CREPÚSCULO DO SÉCULO 21
A nossa segunda questão traz o sociólogo norte-americano Richard Sennett. Filho de imigrantes russos, as suas obras abordam os impactos do neoliberalismo nas relações de trabalho e nas cidades contemporâneas. A questão que nos interessa é a 16 da prova de 2013, pois nela podemos detectar de maneira bastante objetiva como as privatizações e suas tecnocracias tem relativizado o conceito de trabalho com contemporâneo:


Não há muito mistério entre as alternativas propostas: é possível dizer que se trata de uma questão acessível, afinal o recorte do texto original é encerrado com a afirmação de que o capital financeiro se reinventa justamente para tornar a exploração do trabalho mais direto e, portanto, mais eficiente. Dessa maneira, vamos à letra “E” que indica que, por trás da aparente flexibilidade que o trabalho assumiu está o intenso controle sobre a sua produtividade.

Para fechar, podemos fazer uma rápida revisão traçando algumas interessantes semelhanças entre ambas questões:
  • Elas abordam o impacto de novas tecnologias sobre as forças produtivas de suas épocas: enquanto em Thompson assistimos à mecanização do trabalho, em Sennett vemos os efeitos da informatização do mesmo;
  • Enquanto em Thompson os teares mecânicos centralizam a mão de obra para melhor discipliná-la, aqui em Sennett as tecnologias informáticas flexibilizam o trabalho para melhor gerenciá-lo;
  • Se em Thompson há uma segregação cada vez maior entre o espaço doméstico e o espaço profissional, em Sennett ocorre o contrário: existe uma forte tendência de confusão entre o tempo pessoal e o tempo profissional.
Em outras palavras, pode-se dizer que com ambas questões, o ENEM promove leituras de como o capital é capaz de desenvolver novas expressões de seu poder administrativo sobre as forças produtivas humanas. 

Abraços!
Profábio

domingo, 5 de abril de 2015

Vlado - 40 anos depois

RESUMO: O artigo trata de atualizar a relevância do filme "Vlado - 30 anos depois" à luz dos conceitos de "memória" e "testemunho". A morte de Vlado Herzog completará 40 anos neste outubro de 2015. Um prato cheio para os vestibulares...


FILMES E REMEMORAÇÃO
Já tivemos a oportunidade de relacionar o filme "Vlado" com outro filme significativo a respeito do regime civil-militar, o "Hércules 56". Naquele abril de 2014, o Coronel Malhães dava seu depoimento à Comissão Nacional da Verdade: uma confissão a respeito dos lugares e métodos de tortura que definiram as suas atividades na famosa "Casa de Petrópolis". À época, considerei pertinente relacionar o filme "Vlado" com esses outros dois registros audiovisuais devido às dimensões narrativas. Um dos motivos que torna "Hércules 56" um filme imprescindível é o fato de nos oferecer os testemunhos de sobreviventes que lutaram contra a Ditadura. Quanto ao "Vlado", ele ganha força à medida que demonstra aquilo que é indizível a respeito do regime militar.

MEMÓRIAS CONTEMPORÂNEAS
Os estudos em torno da memória, narrativa e testemunho têm sido cada vez mais recorrentes nos campos da História e Literatura. Dentre os fatores que estimularam as pesquisas sobre esses temas, podemos citar o avanço das esquerdas nos governos latino-americanos na última década e a premente necessidade de investigar, atualizar e dimensionar as memórias políticas (sejam individuais ou coletivas) que foram oficialmente sonegadas pelos regimes militares no cone sul latino-americano.

Mesmo que o espaço desse artigo não nos permita uma análise robusta a respeito do tema, penso que seja interessante rastrear como os conceitos de "memória" e "testemunho" têm sido problematizados hoje em dia. A minha pretensão, como sempre, é oferecer referências teóricas àqueles que queiram produzir melhores redações.

MEMÓRIA 
É aquilo que nos torna presentes. Ou seja, a memória sempre é criteriosa e seletiva. Memória é aquilo que nos tornar cada vez mais humanos à medida que somos capazes de reconhecer e evitar nossos fracassos e derrotas. Em outras palavras, se os instintos tornam os outros animais mais adaptativos, em nós, a memória tem teria essa função primordial. Que fique claro que aqui estamos no terreno da História. Com vocês, a Profa Gagnebin.


Sendo assim, quando começamos a falar a respeito do que fomos, quando começamos a racionalizar, a explicar o nosso passado, matamos a memória porque a transformamos em história: palavra, território afetivo, simbolizado e significado. E sempre de acordo com o nosso presente. Nunca nos lembramos das pessoas, eventos e afetos da mesma maneira. O "lembrar" sempre é uma operação de recorte, de crítica e fundada naquilo que nos é importante hoje. No que toca a nossa consciência histórica, só nos lembramos de algo ou de alguém que nos importa hoje. Sendo assim, Vlado ainda é presença entre nós? Seria o Amarildo um espectro de Vlado? Por que ainda a tortura no país?

TESTEMUNHO
Os romanos distinguiam "testis" de "supertes". "Testis" define aquele que viu e vivenciou um fato, ou seja, "testis" é aquele que traz uma versão visual - e, portanto, verdadeira - a respeito de um acontecimento. Por sua vez, "supertes"é aquele que ouviu dizer a respeito de algo, isto é, ele é uma espécie de terceira pessoa que pode comprovar algum fato. Com vocês, o Prof. Seligmann-Silva.


Essas duas versões do testemunho ganham relevo quando os temas são os regimes militares latino-americanos, pois como testemunhar a respeito de espionagens, prisões arbitrárias e torturas? De que forma valorizar - e até mesmo encarar - confissões de tortura e de violações humanas? Seria possível narrar integralmente o horror dos porões? E aqueles que testemunham por terceiros, que condições narrativas eles promovem? O fato de eles narrarem já não é forte o bastante para demonstrar que outros não podem (nem poderão) narrar? Enfim, a palavra seria capaz de reintegrar o que restou de humano ao presente?

VLADO E VESTIBULAR
Hoje, em 2015, o filme "Vlado" completa dez anos. É um filme forte pela maneira como é conduzido com câmeras digitais bem próximas dos rostos dos depoentes, pessoas que viveram ou trabalharam com Vlado. Além desse recurso retórico, outra força expressiva do filme reside no detalhismo dos testemunhos trazidos à tona.... Assim, eis uma questão exemplar da UFSM/2011 a respeito do tema:


(GABARITO:C)
Abraços e bons estudos!
Profábio

domingo, 22 de março de 2015

Memória e esquecimento em "Ida" (2015)

RESUMO
Por onde estreou, o último filme de Pawel Pawlikowski causou discussões. A direita católica o criticou pelas sugestões imorais em torno de Ana, a protagonista. A esquerda europeia teceu críticas à memória tirânica em torno de Wanda, a tia da protagonista. Em meio a essas críticas, houve aqueles que criticaram a forma como o diretor abordou a memória da Shoah... Para acompanhar este rico ziguezague, recomendo a leitura do "The Guardian". Ou então, sigam tranquilos: não há spoilers por aqui!


ANA, A PROTAGONISTA
O filme narra a história de Ana, uma jovem que perdeu seus pais e está prestes a fazer o seu voto de castidade. Dada a iminência do voto, a Madre sugere que ela procure sua tia, a única parente ainda viva de sua família. As cenas iniciais demonstram a clausura, o silêncio, a austeridade da vida monástica. Valores que logo serão colocados em xeque no encontro com a tia Wanda.

Logo no primeiro encontro com a tia, Ana aprende que na verdade o seu nome é Ida, e que seus familiares judeus foram exterminados no Holocausto. Fria e quase impessoal, a tia é somente o primeiro de muitos choques de Ida. A tia Wanda, a única sobrevivente da família, é, antes de tudo, um sintoma: é quem jogará Ida no limiar entre o passado e o presente, é quem vai deslocar os afetos de Ida em direção a um impasse: será que o passado realmente passa? E  como agir, o que fazer quando o passado insiste em estar presente? A partir desse momento, redescobrimos junto de Ida (ex-Ana) não somente o seu passado, mas também novas possibilidades de futuro.

O JAZZ, ESSE MUNDANO
A tia atende aos pedidos de Ida: ela precisa buscar seu passado, as verdades a respeito da família, onde estão os seus antepassados. Ao longo dessa viagem, elas cruzam belas paisagens entrecortadas por diálogos raros, costurados por silêncios, rumores e lacunas. Afinal, todo exercício de lembrança é uma forma de reconstrução de si mesmo. Ou seja, relembrar é uma forma de poder: de poder autorizar um passado; de poder dizer o que se foi e, então, porque se é assim hoje; de julgar ou redimir os mortos; enfim, todo exercício de lembrança traz em si um paradoxo: diz-se sobre o passado a fim de legitimar um presente, assim como diz-se sobre o presente como uma forma de celebração do passado.

Durante a viagem, Wanda e Ida dão carona a um músico. Um jazzista que troca olhares insinuantes com ambas enquanto fala de sua vida errante e boêmia. Esse será um personagem importante na vida de Ida: como jazzista,  ele simboliza a vida vulgar e mundana da sociedade de consumo. Vale lembrar: o jazz é um estilo musical nascido nos Estados Unidos, uma linguagem parida nos prostíbulos e na vida noturna da América.... Não à toa, Adorno fez as cabeças dos frankfurtianos ao desprezar o jazz como sendo a expressão maior da decadência da indústria cultural ocidental... Dessa forma, caberiam as perguntas: Ida resistirá ao saxofone coltraneano do músico? Como ela enfrentará as seduções da vida noturna? Não seria o jazzista o canto de sereia de Ida?

A PAISAGEM, UM ESQUECIMENTO
Chegamos ao vilarejo de seus antepassados. Ali, a tia Wanda começa a revelar também o seu passado. Não por completo, afinal só sabemos dela pelas lacunas, por aquilo que lhe falta: a des-identidade, a des-importância que ela tem para as autoridades locais e a falta de lucidez provocada pela constante embriaguez.... Outrora uma importante jurisprudente do regime soviético, Wanda fica furiosa por não ser reconhecida pelas baixas patentes que a encarceram. Após esse episódio, vamos em busca, enfim, de seus antepassados.

Ao percorrermos o vilarejo com elas, observamos um lugar calmo e bucólico. Para um espectador normal, nada de anormal: os bois passam, as batatas são colhidas e a vida segue. Eis o interior da Polônia. Entretanto, este cenário bucólico e frívolo esconde o capítulo mais bizarro da história contemporânea: o Holocausto. O vilarejo é cercado por bosques: as árvores que vemos foram plantadas pelos batalhões nazistas no final da Guerra, pois uma vez que a derrota era certa, eles trataram de esconder, ocultar, apagar os vestígios dos campos de concentração! Em outras palavras, não bastava montar uma indústria genocida: era fundamental imputar também um esquecimento oficial.... Os bosques que vemos não escondem o Holocausto: eles são a própria carne e materialização dele. A serenidade da natureza, às vezes, pode não calar a brutalidade de certas memórias... E então, o passado passa?


ANA, IDA E AGORA?
Como se vê, o filme tem muitas nuances: a transformação de Ana em Ida; a revelação das memórias tirânicas e alienadoras de Wanda; as seduções que a cultura de massa representam frente à ética monástica e, enfim, a dimensão brutal, corpórea e presente do Holocausto.

Sendo assim, deixo aqui algumas perguntas: não seria interessante pensar o filme como um caminhar no limiar entre o passado e o futuro? Pois enquanto levava sua vida monástica, Ana era a própria negação de seu passado... Mas à medida que a acompanhamos no filme, ela já não é mais Ana e, ao mesmo tempo, ainda não é Ida: ela vive numa zona cinzenta, num intervalo de sua identidade, numa espécie de umbral existencial. A ela já não é mais possível ser católica, mas ao mesmo tempo a tensa e lenta revelação de seus antepassados torna impossível assumir-se judia. E talvez não lhe seja mais possível ser "irmã", mas uma coisa é certa: é o convívio com o mundo tal como ele é que a torna mais humana.

Abraços fortes!
Fábio