quinta-feira, 4 de junho de 2015

O capital e o trabalho no ENEM

RESUMO
"Não existe almoço de graça”, dizem os conservadores. Essa famosa sentença tem conquistado cada vez mais relevo no debate político brasileiro contemporâneo, pois de certa forma ela serve para balizar quem se propõe à esquerda/ progressista e à direita/ conservadora. Veja, há quem pense que uma das funções do Governo seria o combate às desigualdades sociais através de medidas assistencialistas. Para esses, o almoço nosso de cada dia seria pelo menos mais barato, afinal apoiariam uma forma de Estado de Bem-Estar Social. Por outro lado, há outros que pensam que ao Governo caberia tão somente a aplicação da leis e a manutenção da ordem, afinal as desigualdades entre nós deveria ser resolvida através da livre iniciativa, ou seja, através do reino das oportunidades do livre mercado.

Oras, uma vez que para se haver um bom debate, uma boa disputa teórica é preciso que haja ao menos um ponto de convergência – pois, sem ele não haveria discordância! – logo de início uma questão se impõe a nós: o que exatamente estaria em jogo quando se afirma que não há almoço gratuito? Não seria interessante pensar que, no fundo, ela nos leve a questionar o que é o trabalho?


ESCLARECIMENTO É LIBERALISMO
“Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade”, eis a famosa citação kantiana que ecoa pelos vestibulares. É, mas o tal do Esclarecimento foi um pouco além da defesa da autonomia moral do indivíduo e também inventou a sociedade comercial como o seu fundamento. Como se sabe, Locke e seus colegas esclarecidos afirmavam que existiria um “estado de natureza” no qual nos são atribuídas propriedades privadas que deveriam ser mantidas num “estado de sociedade”. Ou seja, de modo geral, os contratualistas creditavam o surgimento da sociedade civil à necessidade de proteção de valores individuais como “o meu tempo, a minha dedicação, o meu trabalho e seus frutos, isto é: a minha riqueza”.

Desta forma, as desigualdades de nossa vida em sociedade seriam, então, uma extensão de nossas desigualdades naturais: uma vez que todos somos livres para explorarmos nossos potenciais e talentos, a partir de agora é cada um por si e o livre mercado para todos: ele seria o reino das oportunidades! Portanto, a sua fome vai de encontro às batatas do vizinho porque elas são melhores e mais saudáveis, são uma melhor oferta. A tua satisfação vai de encontro com a satisfação dele. Nada melhor do que isso, afinal além de produzir riquezas, o livre mercado produz virtudes!

Entretanto, não é muito bem assim que pensa o nosso E-N-E-M... Pois nele podemos encontrar leituras mais realistas que envolvem critérios econômicos, sociais e políticos: o ENEM nos promove interpretações marxistas a respeito da história do trabalho. E como sabemos, (em termos de vestibular) Marx se apresenta para nós como um crítico da noção liberal do trabalho. Se para os liberais o trabalho enobrece porque através dele eu me torno socialmente útil, para Marx essa sentença é, antes de tudo, uma questão ideológica que camufla, que esconde, que oculta algo fundamental: o predomínio do capital sobre o trabalho, isto é, o fato de que o trabalho é uma mercadoria que produz mercadorias. E quando o trabalho está em jogo entre as quatro linhas do ENEM, ninguém melhor do que Marx para a escalação. Nesse sentido, devemos estar preparados para questões do tipo: “qual os impactos do assalariamento sobre o trabalho? Quais os efeitos da separação entre o trabalhador e os meios de produção? O assalariamento envolve estritamente relações de poder econômico ou também relações de poder político e cultural?” Temos adiante um estudo comparativo entre duas questões que envolvem o tema “trabalho”. Sim, existem várias, mas optamos por estas devido ao apelo de seus autores.

THOMPSON E O CREPÚSCULO DO SÉCULO 18
A primeira questão traz “A formação da classe operária”, do marxista inglês Edward Palmer Thompson expresso na questão 67 do Caderno Azul do ENEM/2009 cujo enunciado afirma:


Thompson é um dos maiores nomes do chamado marxismo cultural e atuou junto com Raymond Williams e Eric Hobsbawm na New Left Review, uma importante revista que aliou marxismo e estudos culturais a partir dosanos 1950 na Inglaterra. Dentre as suas propostas, estava a de compreender os hábitos e costumes dos trabalhadores/as como formas de resistência social. Para eles, a cultura seria um modo de produção. Em outras palavras, o importante para esses autores seria detectar e compreender como as tensões políticas e econômicas se expressam também através das práticas culturais.

Nota-se que a sugestão da letra “D” como gabarito indica como o regime de assalariamento opera uma decadência da qualidade cultural do trabalho, isto é: até o fim do século 18, aos fazendeiros seria possível dominar não somente práticas agrícolas de subsistência como também o regime fabril tecelão. Aliando ambas atividades, eles detinham não somente a autonomia de seus meios de produção como também obtinham prestígio social. Entretanto, o advento do assalariamento não somente apartou o trabalhador dos meios de vida como também generalizou a mão de obra de tal forma que potencializou seu anonimato.

SENNETT E O CREPÚSCULO DO SÉCULO 21
A nossa segunda questão traz o sociólogo norte-americano Richard Sennett. Filho de imigrantes russos, as suas obras abordam os impactos do neoliberalismo nas relações de trabalho e nas cidades contemporâneas. A questão que nos interessa é a 16 da prova de 2013, pois nela podemos detectar de maneira bastante objetiva como as privatizações e suas tecnocracias tem relativizado o conceito de trabalho com contemporâneo:


Não há muito mistério entre as alternativas propostas: é possível dizer que se trata de uma questão acessível, afinal o recorte do texto original é encerrado com a afirmação de que o capital financeiro se reinventa justamente para tornar a exploração do trabalho mais direto e, portanto, mais eficiente. Dessa maneira, vamos à letra “E” que indica que, por trás da aparente flexibilidade que o trabalho assumiu está o intenso controle sobre a sua produtividade.

Para fechar, podemos fazer uma rápida revisão traçando algumas interessantes semelhanças entre ambas questões:
  • Elas abordam o impacto de novas tecnologias sobre as forças produtivas de suas épocas: enquanto em Thompson assistimos à mecanização do trabalho, em Sennett vemos os efeitos da informatização do mesmo;
  • Enquanto em Thompson os teares mecânicos centralizam a mão de obra para melhor discipliná-la, aqui em Sennett as tecnologias informáticas flexibilizam o trabalho para melhor gerenciá-lo;
  • Se em Thompson há uma segregação cada vez maior entre o espaço doméstico e o espaço profissional, em Sennett ocorre o contrário: existe uma forte tendência de confusão entre o tempo pessoal e o tempo profissional.
Em outras palavras, pode-se dizer que com ambas questões, o ENEM promove leituras de como o capital é capaz de desenvolver novas expressões de seu poder administrativo sobre as forças produtivas humanas. 

Abraços!
Profábio

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