quinta-feira, 4 de junho de 2015

O Liberalismo e a UNESP

RESUMO
“A ideologia é uma expressão política das tensões econômicas”. Para um bom marxista, todos os objetos, produtos e mercadorias de nossa sociedade de consumo seriam carregados de significados e valores que expressam tanto as nossa relações materiais e econômicas como também as tensões sociais, as disputas políticas, enfim os jogos de poder nelas envolvidos. Em outras palavras, “ideologia” é um conjunto de valores e princípios que estão embutidos nos produtos que consumimos.

Sendo assim, seria interessante propor algumas questões como: e os vestibulares? Eles também promovem ideologias? Sendo concursos públicos, eles deveriam zelar por aquilo que chamamos de “imparcialidade”? E se eles estão ‘carregados’ de ideologia, seria possível detectá-las através da análise de suas questões? Bem, sendo assim vamos nos arriscar na comparação de duas questões da Unesp que nos parecem envolver valores afins.

PONDÉ E O ELOGIO AO ERRO
Pra começar, vamos levar em consideração uma grande conquista dos estudos linguísticos ao longo do século 20: a língua não é um instrumento neutro. Isto é, toda vez que falamos alguma coisa, nós desempacotamos um conjunto de valores, referências, princípios, significados e sentidos que dizem muito não só sobre nós, mas também sobre as nossas experiências sociais.

Certo, isto pode até nos soar como um “senso comum”, algo trivial para nós hoje em dia. Entretanto, se está claro que os nossos discursos dizem muito a respeito de nós, talvez as palavras que o compõem não tragam a mesma clareza. Explico: as próprias palavras, as suas inflexões e os tons que as colorem trazem consigo uma forte carga de sentidos culturais e políticos que podem revelar as tensões sociais/ jogos de poder de um determinado momento e contexto. Oras, há quem advogue que “homossexualidade” é algo distinto de “homoafetividade”. Há quem lute na afirmação de que “negro” não tem o mesmo sentido que “afrodescendente”. Nesta toada, “índios” não existem, mas sim “povos nativos”. Perceba que, muitas vezes, as palavras podem ser um enxame de equívocos.

Essas nossas provocações vão de encontro com o que se chama de politicamente correto, um termo que ganhou musculatura nos atritos entre a direita e a esquerda norte-americana nos anos 1980. De um lado, o avanço dos estudos multiculturalistas nas universidade ianques tratavam de descontruir as noções de subalternidade que envolviam raça, gênero, orientação sexual e nacionalidades. Por sua vez, a direita enfrentava este páreo denunciando esses estudos como uma forma de “patrulhamento ideológico” ou de “higienização de hábitos e costumes.” Ou seja preconceitos contra preconceitos.

Nós aqui no Brasil, aprendemos a lidar com essas coisas agora, há pouco tempo, ao longo da última década. Aqui a polarização se deu entre aqueles que defendem o direito de todos terem TV a cabo e aqueles que dizem que os aeroportos se tornaram rodoviárias. Isto é, os primeiros aplaudiam personagens como a “Lady Kate” e consideravam “certo” escrever como se fala. Já os outros sentem saudades de “Caco Antibes” que gritava de suas alturas ter “horror a pobres”.

Uma forma de analisarmos esta polêmica está na questão 58 da Unesp de 17/11/2013. A conclusão é a seguinte: pode-se dizer que, ao defender um Estado mínimo, o autor também defende a possibilidade de nós errarmos por nossa conta e risco. Ou seja, a preocupação aqui é que o indivíduo seja capaz de assumir as responsabilidades pelos seus próprios erros e acertos. E quanto mais ele for capaz de errar por conta própria, melhor a sociedade para todos porque cada um tomará conta de sua própria vida.

“VEJA” O ELOGIO À INDIVIDUALIDADE

Por sua vez, a nossa segunda questão, embora aborde um tema diferente, tem um pano de fundo semelhante. Logo de cara, o enunciado nos traz dois autores britânicos do século 19: Bentham e Mill. Como um bom britânico do século 19, eles eram liberais e deram um passo além: fundaram a ética utilitarista. Vejamos: primeiro como liberais, eles não enxergam a sociedade como um conjunto social, como um grupo coletivo; ao contrário, para eles a sociedade é um grupo de indivíduos proprietários. Agora, como utilitaristas, a preocupação deles está na utilidade social de cada indivíduo.

Vejamos, analisar a utilidade de alguma coisa implica em analisar o que está fora dela, as suas consequências, os seus efeitos. Sendo assim, poderíamos cogitar que uma pessoa ética é aquela que bate metas, cumpre aquilo que se propõe. Estudar liberalismo gabaritar a filosofia da Unesp. Calma porque o utilitarismo vai um pouco além disso, porque o que importa aqui são os outros. A felicidade e o bem-estar dos outros. Ou seja, você gabarita a Unesp, mas para se tornar um ótimo engenheiro para a sociedade. O fundamental para os utilitaristas é o que você faz de você para a sociedade. Perceba na questão 58 é da Unesp de 25/05/2014.

A leitura da questão evidencia os impactos sociais de um Estado assistencialista: com o propósito de proteger minorias étnicas e inclui-las socialmente, o Governo compromete a utilidade social não só da terra como também do trabalho daqueles economicamente viáveis.

Em outras palavras, para um raciocínio liberal utilitarista, a coisa funciona da seguinte maneira: no afã de ajustar desigualdades econômicas históricas, o Governo só faz reforçar e perpetuar essas mesmas desigualdades econômicas ao impedir que os mais aptos deem conta do recado. Isto é, da terra. Além disso, mesmo a intenção de reparar culturalmente a etnicidade dos povos nativos, ele só faz reforçar e perpetuar a marginalização deles porque demonstra que eles são incapazes de tornar a terra economicamente viável.

CONCLUSÃO
Pra fechar, pode-se perceber que ambas questões tem o mesmo princípio filosófico: o liberalismo. Sendo que na primeira, o liberalismo é uma forma de criticar o avanço das mãos nada invisíveis do Governo que tentam promover, disciplinar e adestrar hábitos e comportamentos como “certos” e “corretos” e aceitos socialmente. E o “kit gay” do Haddad que o diga. Por sua vez, na segunda questão o liberalismo em sua vertente utilitarista é o argumento utilizado para demonstrar as mesmas mãos nada invisíveis do Governo que, ao tentar corrigir ‘distorções históricas’, na verdade só a aprofundam.

Enfim, apesar de a primeira questão ter um apelo cultura e a segunda ter um apelo econômico, em ambas é possível detectar a presença do liberalismo. Ou seja, a proposta em ambas é a seguinte: o bem –estar social é uma coisa que cada um inventa pra si mesmo. E, inventando-o para si mesmo, cada um contribuiria de maneira significativa para todos. Afinal, nada melhor do que cada um tomar conta de sua própria vida.

Abraços!

Profábio.

O capital e o trabalho no ENEM

RESUMO
"Não existe almoço de graça”, dizem os conservadores. Essa famosa sentença tem conquistado cada vez mais relevo no debate político brasileiro contemporâneo, pois de certa forma ela serve para balizar quem se propõe à esquerda/ progressista e à direita/ conservadora. Veja, há quem pense que uma das funções do Governo seria o combate às desigualdades sociais através de medidas assistencialistas. Para esses, o almoço nosso de cada dia seria pelo menos mais barato, afinal apoiariam uma forma de Estado de Bem-Estar Social. Por outro lado, há outros que pensam que ao Governo caberia tão somente a aplicação da leis e a manutenção da ordem, afinal as desigualdades entre nós deveria ser resolvida através da livre iniciativa, ou seja, através do reino das oportunidades do livre mercado.

Oras, uma vez que para se haver um bom debate, uma boa disputa teórica é preciso que haja ao menos um ponto de convergência – pois, sem ele não haveria discordância! – logo de início uma questão se impõe a nós: o que exatamente estaria em jogo quando se afirma que não há almoço gratuito? Não seria interessante pensar que, no fundo, ela nos leve a questionar o que é o trabalho?


ESCLARECIMENTO É LIBERALISMO
“Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade”, eis a famosa citação kantiana que ecoa pelos vestibulares. É, mas o tal do Esclarecimento foi um pouco além da defesa da autonomia moral do indivíduo e também inventou a sociedade comercial como o seu fundamento. Como se sabe, Locke e seus colegas esclarecidos afirmavam que existiria um “estado de natureza” no qual nos são atribuídas propriedades privadas que deveriam ser mantidas num “estado de sociedade”. Ou seja, de modo geral, os contratualistas creditavam o surgimento da sociedade civil à necessidade de proteção de valores individuais como “o meu tempo, a minha dedicação, o meu trabalho e seus frutos, isto é: a minha riqueza”.

Desta forma, as desigualdades de nossa vida em sociedade seriam, então, uma extensão de nossas desigualdades naturais: uma vez que todos somos livres para explorarmos nossos potenciais e talentos, a partir de agora é cada um por si e o livre mercado para todos: ele seria o reino das oportunidades! Portanto, a sua fome vai de encontro às batatas do vizinho porque elas são melhores e mais saudáveis, são uma melhor oferta. A tua satisfação vai de encontro com a satisfação dele. Nada melhor do que isso, afinal além de produzir riquezas, o livre mercado produz virtudes!

Entretanto, não é muito bem assim que pensa o nosso E-N-E-M... Pois nele podemos encontrar leituras mais realistas que envolvem critérios econômicos, sociais e políticos: o ENEM nos promove interpretações marxistas a respeito da história do trabalho. E como sabemos, (em termos de vestibular) Marx se apresenta para nós como um crítico da noção liberal do trabalho. Se para os liberais o trabalho enobrece porque através dele eu me torno socialmente útil, para Marx essa sentença é, antes de tudo, uma questão ideológica que camufla, que esconde, que oculta algo fundamental: o predomínio do capital sobre o trabalho, isto é, o fato de que o trabalho é uma mercadoria que produz mercadorias. E quando o trabalho está em jogo entre as quatro linhas do ENEM, ninguém melhor do que Marx para a escalação. Nesse sentido, devemos estar preparados para questões do tipo: “qual os impactos do assalariamento sobre o trabalho? Quais os efeitos da separação entre o trabalhador e os meios de produção? O assalariamento envolve estritamente relações de poder econômico ou também relações de poder político e cultural?” Temos adiante um estudo comparativo entre duas questões que envolvem o tema “trabalho”. Sim, existem várias, mas optamos por estas devido ao apelo de seus autores.

THOMPSON E O CREPÚSCULO DO SÉCULO 18
A primeira questão traz “A formação da classe operária”, do marxista inglês Edward Palmer Thompson expresso na questão 67 do Caderno Azul do ENEM/2009 cujo enunciado afirma:


Thompson é um dos maiores nomes do chamado marxismo cultural e atuou junto com Raymond Williams e Eric Hobsbawm na New Left Review, uma importante revista que aliou marxismo e estudos culturais a partir dosanos 1950 na Inglaterra. Dentre as suas propostas, estava a de compreender os hábitos e costumes dos trabalhadores/as como formas de resistência social. Para eles, a cultura seria um modo de produção. Em outras palavras, o importante para esses autores seria detectar e compreender como as tensões políticas e econômicas se expressam também através das práticas culturais.

Nota-se que a sugestão da letra “D” como gabarito indica como o regime de assalariamento opera uma decadência da qualidade cultural do trabalho, isto é: até o fim do século 18, aos fazendeiros seria possível dominar não somente práticas agrícolas de subsistência como também o regime fabril tecelão. Aliando ambas atividades, eles detinham não somente a autonomia de seus meios de produção como também obtinham prestígio social. Entretanto, o advento do assalariamento não somente apartou o trabalhador dos meios de vida como também generalizou a mão de obra de tal forma que potencializou seu anonimato.

SENNETT E O CREPÚSCULO DO SÉCULO 21
A nossa segunda questão traz o sociólogo norte-americano Richard Sennett. Filho de imigrantes russos, as suas obras abordam os impactos do neoliberalismo nas relações de trabalho e nas cidades contemporâneas. A questão que nos interessa é a 16 da prova de 2013, pois nela podemos detectar de maneira bastante objetiva como as privatizações e suas tecnocracias tem relativizado o conceito de trabalho com contemporâneo:


Não há muito mistério entre as alternativas propostas: é possível dizer que se trata de uma questão acessível, afinal o recorte do texto original é encerrado com a afirmação de que o capital financeiro se reinventa justamente para tornar a exploração do trabalho mais direto e, portanto, mais eficiente. Dessa maneira, vamos à letra “E” que indica que, por trás da aparente flexibilidade que o trabalho assumiu está o intenso controle sobre a sua produtividade.

Para fechar, podemos fazer uma rápida revisão traçando algumas interessantes semelhanças entre ambas questões:
  • Elas abordam o impacto de novas tecnologias sobre as forças produtivas de suas épocas: enquanto em Thompson assistimos à mecanização do trabalho, em Sennett vemos os efeitos da informatização do mesmo;
  • Enquanto em Thompson os teares mecânicos centralizam a mão de obra para melhor discipliná-la, aqui em Sennett as tecnologias informáticas flexibilizam o trabalho para melhor gerenciá-lo;
  • Se em Thompson há uma segregação cada vez maior entre o espaço doméstico e o espaço profissional, em Sennett ocorre o contrário: existe uma forte tendência de confusão entre o tempo pessoal e o tempo profissional.
Em outras palavras, pode-se dizer que com ambas questões, o ENEM promove leituras de como o capital é capaz de desenvolver novas expressões de seu poder administrativo sobre as forças produtivas humanas. 

Abraços!
Profábio