RESUMO
“A ideologia é uma expressão política das tensões
econômicas”. Para um bom marxista, todos os objetos, produtos e mercadorias de
nossa sociedade de consumo seriam carregados de significados e valores que expressam
tanto as nossa relações materiais e econômicas como também as tensões sociais,
as disputas políticas, enfim os jogos de poder nelas envolvidos. Em outras
palavras, “ideologia” é um conjunto de valores e princípios que estão embutidos
nos produtos que consumimos.
Sendo assim, seria interessante propor algumas
questões como: e os vestibulares? Eles também promovem ideologias? Sendo
concursos públicos, eles deveriam zelar por aquilo que chamamos de
“imparcialidade”? E se eles estão ‘carregados’ de ideologia, seria possível
detectá-las através da análise de suas questões? Bem, sendo assim vamos nos
arriscar na comparação de duas questões da Unesp que nos parecem envolver
valores afins.
PONDÉ E
O ELOGIO AO ERRO
Pra começar, vamos levar em consideração uma grande conquista
dos estudos linguísticos ao longo do século 20: a língua não é um instrumento
neutro. Isto é, toda vez que falamos alguma coisa, nós desempacotamos um
conjunto de valores, referências, princípios, significados e sentidos que dizem
muito não só sobre nós, mas também sobre as nossas experiências sociais.
Certo, isto pode até nos soar como um “senso comum”, algo
trivial para nós hoje em dia. Entretanto, se está claro que os nossos discursos
dizem muito a respeito de nós, talvez as palavras que o compõem não tragam a
mesma clareza. Explico: as próprias palavras, as suas inflexões e os tons que
as colorem trazem consigo uma forte carga de sentidos culturais e políticos que
podem revelar as tensões sociais/ jogos de poder de um determinado momento e
contexto. Oras, há quem advogue que “homossexualidade” é algo distinto de
“homoafetividade”. Há quem lute na afirmação de que “negro” não tem o mesmo
sentido que “afrodescendente”. Nesta toada, “índios” não existem, mas sim
“povos nativos”. Perceba que, muitas vezes, as palavras podem ser um enxame de
equívocos.
Essas nossas provocações vão de encontro com o que se chama
de politicamente
correto, um termo que ganhou musculatura nos atritos entre a direita e a
esquerda norte-americana nos anos 1980. De um lado, o avanço dos estudos
multiculturalistas nas universidade ianques tratavam de descontruir as noções
de subalternidade que envolviam raça, gênero, orientação sexual e
nacionalidades. Por sua vez, a direita enfrentava este páreo denunciando esses
estudos como uma forma de “patrulhamento ideológico” ou de “higienização de
hábitos e costumes.” Ou seja preconceitos contra preconceitos.
Nós aqui no Brasil, aprendemos a lidar com essas coisas
agora, há pouco tempo, ao longo da última década. Aqui a polarização se
deu entre aqueles que defendem o direito de todos terem TV a cabo e aqueles que
dizem que os aeroportos se tornaram rodoviárias. Isto é, os primeiros aplaudiam
personagens como a “Lady Kate” e consideravam “certo” escrever como se fala. Já
os outros sentem saudades de “Caco Antibes” que gritava de suas alturas ter
“horror a pobres”.
Uma forma de
analisarmos esta polêmica está na questão 58 da Unesp
de 17/11/2013. A conclusão é a seguinte: pode-se dizer que, ao defender um
Estado mínimo, o autor também defende a possibilidade de nós errarmos por nossa
conta e risco. Ou seja, a preocupação aqui é que o indivíduo seja capaz de
assumir as responsabilidades pelos seus próprios erros e acertos. E quanto mais
ele for capaz de errar por conta própria, melhor a sociedade para todos porque
cada um tomará conta de sua própria vida.
“VEJA”
O ELOGIO À INDIVIDUALIDADE
Por sua vez, a nossa segunda questão, embora aborde
um tema diferente, tem um pano de fundo semelhante. Logo de cara, o enunciado
nos traz dois autores britânicos do século 19: Bentham e Mill. Como um bom
britânico do século 19, eles eram liberais e deram um passo além: fundaram a
ética utilitarista. Vejamos: primeiro como liberais, eles não enxergam a sociedade
como um conjunto social, como um grupo coletivo; ao contrário, para eles a
sociedade é um grupo de indivíduos proprietários. Agora, como utilitaristas, a
preocupação deles está na utilidade social de cada indivíduo.
Vejamos, analisar a utilidade de alguma coisa
implica em analisar o que está fora dela, as suas consequências, os seus
efeitos. Sendo assim, poderíamos cogitar que uma pessoa ética é aquela que bate
metas, cumpre aquilo que se propõe. Estudar liberalismo gabaritar a filosofia
da Unesp. Calma porque o utilitarismo vai um pouco além disso, porque o que
importa aqui são os outros. A felicidade e o bem-estar dos outros. Ou seja, você
gabarita a Unesp, mas para se tornar um ótimo engenheiro para a sociedade. O
fundamental para os utilitaristas é o que você faz de você para a sociedade.
Perceba na questão 58 é da Unesp de 25/05/2014.
A leitura da questão evidencia os impactos sociais
de um Estado assistencialista: com o propósito de proteger minorias étnicas e
inclui-las socialmente, o Governo compromete a utilidade social não só da terra
como também do trabalho daqueles economicamente viáveis.
Em outras palavras, para um raciocínio liberal
utilitarista, a coisa funciona da seguinte maneira: no afã de ajustar desigualdades
econômicas históricas, o Governo só faz reforçar e perpetuar essas mesmas
desigualdades econômicas ao impedir que os mais aptos deem conta do recado.
Isto é, da terra. Além disso, mesmo a intenção de reparar culturalmente a
etnicidade dos povos nativos, ele só faz reforçar e perpetuar a marginalização
deles porque demonstra que eles são incapazes de tornar a terra economicamente
viável.
CONCLUSÃO
Pra fechar, pode-se perceber que ambas questões tem
o mesmo princípio filosófico: o liberalismo. Sendo que na primeira, o
liberalismo é uma forma de criticar o avanço das mãos nada invisíveis do
Governo que tentam promover, disciplinar e adestrar hábitos e comportamentos como
“certos” e “corretos” e aceitos socialmente. E o “kit gay” do Haddad que o
diga. Por sua vez, na segunda questão o liberalismo em sua vertente
utilitarista é o argumento utilizado para demonstrar as mesmas mãos nada
invisíveis do Governo que, ao tentar corrigir ‘distorções históricas’, na
verdade só a aprofundam.
Enfim, apesar de a primeira questão ter um apelo
cultura e a segunda ter um apelo econômico, em ambas é possível detectar a
presença do liberalismo. Ou seja, a proposta em ambas é a seguinte: o bem
–estar social é uma coisa que cada um inventa pra si mesmo. E, inventando-o
para si mesmo, cada um contribuiria de maneira significativa para todos. Afinal,
nada melhor do que cada um tomar conta de sua própria vida.
Abraços!
Profábio.