domingo, 22 de março de 2015

Memória e esquecimento em "Ida" (2015)

RESUMO
Por onde estreou, o último filme de Pawel Pawlikowski causou discussões. A direita católica o criticou pelas sugestões imorais em torno de Ana, a protagonista. A esquerda europeia teceu críticas à memória tirânica em torno de Wanda, a tia da protagonista. Em meio a essas críticas, houve aqueles que criticaram a forma como o diretor abordou a memória da Shoah... Para acompanhar este rico ziguezague, recomendo a leitura do "The Guardian". Ou então, sigam tranquilos: não há spoilers por aqui!


ANA, A PROTAGONISTA
O filme narra a história de Ana, uma jovem que perdeu seus pais e está prestes a fazer o seu voto de castidade. Dada a iminência do voto, a Madre sugere que ela procure sua tia, a única parente ainda viva de sua família. As cenas iniciais demonstram a clausura, o silêncio, a austeridade da vida monástica. Valores que logo serão colocados em xeque no encontro com a tia Wanda.

Logo no primeiro encontro com a tia, Ana aprende que na verdade o seu nome é Ida, e que seus familiares judeus foram exterminados no Holocausto. Fria e quase impessoal, a tia é somente o primeiro de muitos choques de Ida. A tia Wanda, a única sobrevivente da família, é, antes de tudo, um sintoma: é quem jogará Ida no limiar entre o passado e o presente, é quem vai deslocar os afetos de Ida em direção a um impasse: será que o passado realmente passa? E  como agir, o que fazer quando o passado insiste em estar presente? A partir desse momento, redescobrimos junto de Ida (ex-Ana) não somente o seu passado, mas também novas possibilidades de futuro.

O JAZZ, ESSE MUNDANO
A tia atende aos pedidos de Ida: ela precisa buscar seu passado, as verdades a respeito da família, onde estão os seus antepassados. Ao longo dessa viagem, elas cruzam belas paisagens entrecortadas por diálogos raros, costurados por silêncios, rumores e lacunas. Afinal, todo exercício de lembrança é uma forma de reconstrução de si mesmo. Ou seja, relembrar é uma forma de poder: de poder autorizar um passado; de poder dizer o que se foi e, então, porque se é assim hoje; de julgar ou redimir os mortos; enfim, todo exercício de lembrança traz em si um paradoxo: diz-se sobre o passado a fim de legitimar um presente, assim como diz-se sobre o presente como uma forma de celebração do passado.

Durante a viagem, Wanda e Ida dão carona a um músico. Um jazzista que troca olhares insinuantes com ambas enquanto fala de sua vida errante e boêmia. Esse será um personagem importante na vida de Ida: como jazzista,  ele simboliza a vida vulgar e mundana da sociedade de consumo. Vale lembrar: o jazz é um estilo musical nascido nos Estados Unidos, uma linguagem parida nos prostíbulos e na vida noturna da América.... Não à toa, Adorno fez as cabeças dos frankfurtianos ao desprezar o jazz como sendo a expressão maior da decadência da indústria cultural ocidental... Dessa forma, caberiam as perguntas: Ida resistirá ao saxofone coltraneano do músico? Como ela enfrentará as seduções da vida noturna? Não seria o jazzista o canto de sereia de Ida?

A PAISAGEM, UM ESQUECIMENTO
Chegamos ao vilarejo de seus antepassados. Ali, a tia Wanda começa a revelar também o seu passado. Não por completo, afinal só sabemos dela pelas lacunas, por aquilo que lhe falta: a des-identidade, a des-importância que ela tem para as autoridades locais e a falta de lucidez provocada pela constante embriaguez.... Outrora uma importante jurisprudente do regime soviético, Wanda fica furiosa por não ser reconhecida pelas baixas patentes que a encarceram. Após esse episódio, vamos em busca, enfim, de seus antepassados.

Ao percorrermos o vilarejo com elas, observamos um lugar calmo e bucólico. Para um espectador normal, nada de anormal: os bois passam, as batatas são colhidas e a vida segue. Eis o interior da Polônia. Entretanto, este cenário bucólico e frívolo esconde o capítulo mais bizarro da história contemporânea: o Holocausto. O vilarejo é cercado por bosques: as árvores que vemos foram plantadas pelos batalhões nazistas no final da Guerra, pois uma vez que a derrota era certa, eles trataram de esconder, ocultar, apagar os vestígios dos campos de concentração! Em outras palavras, não bastava montar uma indústria genocida: era fundamental imputar também um esquecimento oficial.... Os bosques que vemos não escondem o Holocausto: eles são a própria carne e materialização dele. A serenidade da natureza, às vezes, pode não calar a brutalidade de certas memórias... E então, o passado passa?


ANA, IDA E AGORA?
Como se vê, o filme tem muitas nuances: a transformação de Ana em Ida; a revelação das memórias tirânicas e alienadoras de Wanda; as seduções que a cultura de massa representam frente à ética monástica e, enfim, a dimensão brutal, corpórea e presente do Holocausto.

Sendo assim, deixo aqui algumas perguntas: não seria interessante pensar o filme como um caminhar no limiar entre o passado e o futuro? Pois enquanto levava sua vida monástica, Ana era a própria negação de seu passado... Mas à medida que a acompanhamos no filme, ela já não é mais Ana e, ao mesmo tempo, ainda não é Ida: ela vive numa zona cinzenta, num intervalo de sua identidade, numa espécie de umbral existencial. A ela já não é mais possível ser católica, mas ao mesmo tempo a tensa e lenta revelação de seus antepassados torna impossível assumir-se judia. E talvez não lhe seja mais possível ser "irmã", mas uma coisa é certa: é o convívio com o mundo tal como ele é que a torna mais humana.

Abraços fortes!
Fábio