segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A paz à brasileira

A proposta deste artigo é apresentar dois ou três filmes sobre as recentes manifestações sociais brasileiras Para tanto, faremos uma breve introdução teórica e depois que venham as especulações. A manchete que marca o portal do ESTADÃO de hoje é bem significativa do jogo de interesses envolvidos na tão esperada Copa do Mundo:


A notícia pode ser lida aqui e nos induz a crer no poder de persuasão desta entidade - que organiza, administra e arrecada os royalties dos eventos esportivos da Copa - sobre a Dilma (leia-se, Governo Federal Brasileiro). O que a FIFA e a Dilma pretendem é amenizar as tensões sociais - que ganham volume à medida que a Copa se aproxima - ao reforçarem os eventuais legados sociais do maior evento do ano. Então, partimos de um dado: a FIFA repousa à francesa à direita do ombro de Dilma. Resta reconhecer que ruídos ela ouve à esquerda.

ENTRE T.A.Z E OS BLACKBLOCKS
As ruas tendem a desmentir a FIFA: o que vemos é o aumento das manifestações, da pulverização dos atos de resistência civil e dos microcaos  provocados pela truculência do aparato da polícia militar brasileira.  As manifestações brasileiras soam como a cristalização da ideia da TAZ, isto é, zona autônoma temporária proposta por Bey nos anos 1980 e que passou a ganhar lastro na década seguinte com os diversos protestos mundiais contra a globalização. A proposta da noção da TAZ é, de certa forma, demonstrar que, no mundo contemporâneo, a sociedade civil consegue se deslocar independentemente da sociedade política, ou seja, chegamos num tal estágio de alienação das forças produtivas no capitalismo financeiro em que os indivíduos têm uma forte capacidade de autonomia. Em outras palavras, seria algo como "de tanto nos afastarem das reais forças produtivas e nos lançarem numa sociedade ritmada pelo mundo corporativo, é que hoje estamos soltos, de per si e afrouxados".

Oras, esta não seria uma fraqueza da sociedade civil, mas sim uma condição fundamental para determinar uma zona de atuação livre, autônoma, anárquica, de alto potencial criativo e contestário e, quem sabe, capaz de mobilizar - mesmo que seja como um efeito enxame - uma multidão em torno de reivindicações sociais! Disto resultam as perguntas: não seriam estas as condições oportunas para compreender os blackblocks? Não seria interessante pensá-los como um Sandman que arrasta correntes pelas noites de sonos eleitorais da presidente?

ENTRE A RUA E A CASA, A CONDIÇÃO BRASILEIRA
A tradição da sociologia brasileira é marcada pelas discussões em torno do "cruzamento de raças". Ops, quero dizer da "mestiçagem". Ainda não ficou bom... Melhor, da "mulatização". Em outras palavras, da "miscigenação". Enfim, do "multiculturalismo"! Qualquer que seja o nome que se dê para a condição (não seriam condições?) étnicas da sociedade brasileira, o passo sempre foi o mesmo: tentar compreender a cabeça, o corpo, o bolso, o desejo e a sexualidade do 'povo brasileiro' à luz das chaves interpretativas da trinca "antropologia-etnografia-política". Desde o IHGB até Roberto Da Matta (para ficar no mais recorrentes nos vestibulares), as questões culturais eram o "samba de uma nota só" dos pensamento sociológico brasileiro. A partir da década de 1990, deixamos o samba. E passamos a ter que ouvir o funk: e com razão.

O avanço da cartilha neoliberal sob o Governo FHC e, por extensão, ao longo do Governo Lula, o povo brasileiro assistiu a três cenas marcantes em busca de um "happy end": a estabilização da moeda; o aumento real do poder aquisitivo do salário e a extensão popular do crédito. Entretanto, apesar de acompanharmos todo este filme, ainda carecemos de um "happy end": e o combate à corrupção? E os investimentos públicos em saúde-educação-segurança pública? E a eficiência dos transportes públicos? Enfim, é nós, contribuintes da onívora máquina fiscal tupiniquim? 

Então, não seria o filme "Sob 0,20", produzido pela MUDA, um excelente retrato das mazelas vividas pela sociedade brasileira contemporânea?* 


A GUERRA E O EXERCÍCIO DE PAZ À BRASILEIRA
As condições brasileiras sob protestos deixam tanto o Governo quanto às mídias em alerta. Todo acontecimento se torna "monstruoso", no sentido de que todo e qualquer fato passa a ser noticiado, veiculado, espetacularizado e potencializado em escala internacional. Oras, não estariam até mesmo os franceses preocupados com os rolezinhos? Em suma, o que também está em jogo é que, atualmente, nos é impossível distinguir o fato, a mídia e a veiculação do fato. Em outras palavras, tudo é registrado, documentado, fotografado, filmado, agenciado, veiculado, "streamed" e internacionalizado: o cotidiano quer deixar de ser dia a dia para se tornar histórico.

Para encerrar o artigo, vejo que o filme "Com Vandalismo" aponta com precisão a falta de foco da sociedade brasileira, imprecisão política de nossos políticos e a perdição moral em que as PM's se encontram. Quando a sociedade civil se torna uma máquina de guerra (vide pág. 33) operosa, ameaçadora, deslizante e com um artilharia incerta, qualquer um é alvo, qualquer cabeça vai a prêmio. Dentre os méritos do filme, eu destacaria aquilo que também é chamado de "camerawar": o filme que vemos é feito em tempo real: o som é precário porque a realidade é precária; a imagem é ruim, porque as personagens são humanas, portanto inseguras, instáveis; e a qualidade do filme é desequilibrada, porque todo acontecimento é uma abertura de expectativas.


Vemos que estes três filmes compõem um mosaico bem consequente para compreender as ruas brasileiras.

*PS: [Tenho a impressão de que o filme demonstra muitas das contradições da sociedade brasileira e, dentre todos os méritos que o filme possa ter, ainda me incomoda uma pergunta: o filme é sobre quem? Sobre as ruas? Sobre o Brasil? Sobre o jovem da classe média? Sobre a Universidade de São Paulo? Enfim, o que este filme quer dizer?]

Abraços e um ótimo 2014!
Fábio Monteiro