terça-feira, 27 de agosto de 2013

Vozes negras ao vento: 50 anos de Luther King

Nesta quarta-feira, 28/08/2013, celebramos os cinquenta anos do histórico discurso "I have a dream", do jovem pastor protestante Martin Luther King II, realizado para 250 mil pessoas no Memorial Lincoln. O discurso, reconhecido como uma das maiores performances de oratória do século 20, foi o auge de sua liderança pacifista na defesa dos direitos civis dos negros.

AS IMAGENS DA NEGRITUDE 
Dentre os fatores que fizeram deste discurso um marco histórico estão a formação spiritual de Martin, que lhe deu uma linguagem corporal e entonações de voz singulares e evocativas capazes de estabelecer uma forte ligação emocional com a audiência. Além disso, a mistura de poesia com sermão, a determinação e a autoconfiança somadas às convicções pessoais formam um conjunto ímpar sem concorrências até os dias de hoje. Para se conhecer melhor toda a genealogia do líder Martin, desde a resistência de Rose Parks até sua trágica morte, a melhor fonte seria "Soundtrack for a Revolution", uma produção que estabelece um intenso diálogo entre os depoimentos de personalidades que conviveram com o líder pacifista e as músicas tradicionais envolvidas nas lutas pelos civil rights nos EUA. Eis aqui um clipe de primeira:


Aos 42 anos, a costureira Rose Sparks teve papel fundamental naquele cenário, pois foi presa após recusar-se a ceder o assento a um branco num ônibus em Montgomery, Alabama. Naquele ano de 1955, 60% dos negros do país viviam abaixo da linha da pobreza - hoje, o mesmo número é de negros da classe média. 

Para se ter uma ideia da natureza do segregacionismo estadunidense vigente até 1964, basta ver "Mississipi em Chamas", um filme de Alan Parker que narra a tensa investigação do FBI sobre da morte de três líderes do movimento pelos direitos civis. A cena inicial já demonstra como a territorialidade do país está pré-determinada e pré-conceituadas pelas questões morfológicas, isto é, biológicas dos seus habitantes: vemos dois bebedouros públicos: um para "white people", outro para "colored people".

MALCOM X ATRAVÉS DE SPIKE LEE
Outro grande líder negro foi Malcom Little (1925-1965), dono de uma biografia polêmica e que trocou de nome uma dezena de vezes até decidir pelo "Malcom X" - sendo o "X" um símbolo da perda seu original nome tribal - e com o qual entrou para a História. Malcom, ao contrário do pacifista Martin, não acreditava numa sociedade igualitária e no convívio harmonioso de brancos com negros. Dessa forma, as atividades de Malcom X guardavam fortes relações com os Panteras Negras, movimento negro de teor marxista. Em suma, pode-se dizer que para Malcom, o famoso bordão sessentista "power to the people" deveria ser adaptado para "power to the negros".

 Malcom X foi e ainda é uma grande referência para se compreender as obras do cineasta Spike Lee, diretor da cinebiografia deste líder negro - e que andou passeando pela Bahia recentemente tentando compreender como a "Roma Negra" pode ser governada por Jacques Wagner, um carioca, branco e judeu... Exemplo da "postura malcomiana" de Spike já poderia ser vista em seu primeiro filme "Do the Right Thing" (1989). Nele, Spike já questionava as incoerências das práticas racistas que foram assimiladas até mesmo por outros imigrantes e minorias étnicas que, esquecendo-se que eram ítalo-americanos, sino-americanos ou latino-americanos, avançam sem piedade na defesa de uma suposta cultura branca ao negarem os negros. Detalhe: todos os ídolos culturais do ítalo-americano dono da pizzaria são negros!


A CONSCIÊNCIA NEGRA NA VOZ DE UM BRANCO EX-JUDEU
Para fechar esta primeira parte do artigo, vale citar aqui uma interessante peça daquilo que nos EUA chamam de cross cultural studies: a música "Hurricane" de Bob Dylan, publicada em 1975 no disco "Desire". Dylan acompanhou o caso do ex-boxeador Rubin "Hurricane Carter que, em 1966, foi julgado e condenado por triplo homicídio num bar em New Jersey. Porém, todo o caso foi noticiado pela grande mídia que demonstrava inconsistências técnicas e jurídicas que davam margem às interpretações racistas: Carter e Artis teriam sido presos porque eram negros.

A biografia de Rubin Carter caiu nas mãos de Dylan em 1974 - época em que o velho rouco não ia muito bem em termos financeiros, nem em temos afetivos. Dylan se juntou a Jacques Levy e produziu a canção de 99 versos de quase nove minutos para denunciar a nuvem de hipocrisia que tomou conta do julgamento de Hurricane. Desta forma, desde 1970 Dylan nos mostra que a negritude também podem ressoar através de vozes brancas.

NÚMEROS AFROESTADUNIDENSES
O presidente Lyndon Johnson assinou em 1964, dez meses depois da Marcha sobre Washington, a lei que, na prática, proibiria a segregação em locais públicos e privados. E, em 1965, houve a lei de direito ao voto que garantiu definitivamente a participação eleitoral negra.

Naquele momento, apenas 4% dos negros tinham diploma superior, hoje 38% deles chegam às universidades. Foi em 1967 que a Corte Suprema invalidou as leis estaduais que proibiam o casamento interracial, enquanto, hoje, estima-se que 24% dos homens negros são casados com mulheres de outras etnias.

Quanto à Justiça, ela ainda enxerga a cor da pele: o número de presos negros é seis vezes maior que o de brancos. E, apesar da prática do canabismo ser equivalente entre jovens brancos e negros, estes têm um índice quatro vezes maior de detenção pelo uso da droga. Quanto à desagregação familiar - um tema íntimo ao narcotráfico - ela é bem maior no cenário negro, pois 72% dos bebês negros são nascidos fora do casamento, sendo que este índice gira em torno de 29% entre os brancos.

Enfim, quanto à Educação, já se tornou um infeliz senso comum estadunidense o dizer que "quando um jovem negro tem um livro em suas mãos, seus amigos dizem que ele "está se fazendo de branco'". Está claro que este é um pensamento derrotista que há de ser superado. Porém, o desafio está posto: quando a pergunta é se existe racismo nos EUA, as percepções são bem diferentes: 46% dos negros acham que existe muito racismo; quanto aos brancos, só 16% concordam com esta percepção.

UMA AFROCRONOLOGIA
Para concluir, seria interessante deixar aqui uma cronologia de fatos marcantes que envolvem as conquistas sociais dos negros estadunidenses:

1862 - Abraham Lincoln promulga a "Proclamação da Emanciapação" que declara que os escravos "são doravante livres";
1955 - Resistência pacífica de Rose Parks recusando-se a ceder lugar a um branco no Alabama;
1957 - Os "Nove de Little Rock" são impedidos de entrar em escola em Arkansas onde estavam matriculados. Para tanto, foram escoltados por tropas federais. Registrado pelas lentes de Robert Drew.
1964 - Sanção da Lei de Direitos Civis por L. Johnson que põe fim à segregação racial;
1965 - Assassinato de Malcom X com tiros;
1966 - Criação do partido Black Panthers
2008 - Em novembro, Barack Hussein Obama II é eleito o 44º presidente dos EUA, sendo o primeiro negro;

Abraços e bons estudos!
Profábio.