domingo, 21 de setembro de 2014

Lugares de memórias

Resumo: o artigo apresenta duas visitas históricas, sendo a primeira ao "Museu da Memória" de Montevidéu/ Uruguai e a segunda à "Villa Grimaldi", Santiago/ Chile. Ambos locais são símbolos de resistência histórica das memórias dos regimes ditatoriais latino-americanos.

COMISSÕES E VERDADES
Esse ano de 2014 já trouxe ao Brasil dois grandes desafios: a Copa do Mundo e as eleições que colocam em evidência os limites de duas grandes hegemonias políticas: a do PSDB no Estado de São Paulo e a do PT em nível federal. Porém, além desses desafios, ainda nos resta um a ser digerido a longo prazo: o dossiê final da Comissão Nacional da Verdade.


Desde o início de seus trabalhos em julho de 2012, a CNV esteve envolvida em polêmicas a respeito de suas competências, isto é, se sua prioridade seria de natureza investigativa ou se também seria capaz de judicializar casos de violações aos direitos humanos. Além disso, muito se comentou a respeito de quais verdades estariam em jogo, afinal os intelectuais que a compõem estariam, em maior ou menor grau, comprometidos historicamente com ações de esquerda que armaram sequestros e assaltos entre outras ações consideradas ilegais pelo regime militar brasileiro.

O fato é que ainda há muito a ser investigado por aqui. Dentre os motivos, podemos citar: um volume considerável de arquivos militares foram extintos; é recente o reconhecimento de que empresas e setores civis contribuíram com o aparelho de inteligência e repressão do regime militar; apesar de a Comissão Nacional servir de referência para o surgimento de mais de cem Comissões Estaduais e Municipais da Verdade, é sabida a carência que temos de patrimônios materiais que sinalizem as evidências de um passado ditatorial em nosso país. Dito de outra forma, o avanço democrático nas últimas duas décadas também tratou de institucionalizar um esquecimento hegemônico, pesado e silencioso a respeito de onde e como se praticou a repressão política em nosso país. E podemos compreender isso muito bem quanto visitamos os nossos vizinhos do Cone sul latino-americano.

LUGARES DE MEMÓRIA
Nos estudos históricos, a noção de "lugar de memória" envolve uma polêmica que exige fôlego. Afinal, o que são lugares de memória? Seriam locais que aglutinam boas experiências passadas e, por isso, ainda servem como referências presentes? Seriam espaços que frequentamos para nos lembrar (e resolver) desafios e traumas históricos para que não voltem a ocorrer? Esses lugares deveriam ser públicos ou privados? A quem eles dizem respeito? De quem eles tratam - ou deveriam tratar? Enfim, quando se diz "lugares de memória", é possível dizer que a única coisa que temos como certo é que, antes de tudo, eles são zonas de disputas políticas envolvendo significações sociais, afetivas e econômicas. Para me valer duma metáfora brutal, os "lugares de memória" são os octógonos das tensões históricas.

MUSEU DA MEMÓRIA, MONTEVIDÉU
O Museu de Montevidéu requer uma caminhada, pois ele está situado numa antiga hacienda do século dezenove distante do centro da capital. Leva-se, aproximadamente, uns trinta minutos de ônibus circular para se chegar até o local. Apesar da distância, o acesso é simples, pois pode se tomar vários ônibus a partir da avenida principal da capital, a 18 de julho.

O Museus oferece muitas publicações a respeito do regime militar que perdurou de 1973 a 1985, desde jornais de época, vídeos e pôsteres como formas de resistência política ao regime. Ao chegar ao Museu numa tarde muito, mas muito fria de julho de 2013, eu tive a feliz oportunidade de encontrar um grupo de estudantes norte-americanos que estavam sendo guiados por uma senhora muito gentil que - depois vim a saber - foi companheira de cela de José Mujica - o atual presidente uruguaio em fim de mandato.

O Museu nos oferece uma série de vestígios históricos que dão uma forte sensação de como foi o regime naquele país. Ali podemos encontrar roupas, badulaques e artesanatos produzidos pelos próprios prisioneiros políticos; ruínas de batentes, portas e trancas de celas; restos de instrumentos de tortura; uma enorme coleção de passaportes, fotos, cartas e outros documentos pessoais que restaram dos cárceres, como se pode ver na edição a seguir.


Em tempo: o Uruguai foi capaz de articular uma Comissão para a Paz a partir do ano 2000, sendo que a Anistia foi revogada em outubro de 2011. A Comissão uruguaia, além de investigativa, também conseguiu a punição de uma dezena de agentes da repressão militar, dentre eles Bordaberry, condenado a 30 anos de cárcere em 2006.

VILLA GRIMALDI
Tenho amigos que já visitaram campos de concentração europeus. E tenho a sensação de que seus relatos se aplicariam perfeitamente à experiência de uma visita à Villa Grimaldi, em Santiago... Da mesma forma que o Museu uruguaio, Grimaldi fica distante do centro comercial e turístico da capital. Isso é digno de nota porque se trata de uma forma de discriminação histórica, ou seja, uma forma de se dizer aos turistas "o que deve ser visto e o que deve ser esquecido".

O acesso à Grimaldi leva uns quarenta minutos de baldeação de metrô-e-ônibus a partir da Plaza de Armas, centro de Santiago. Ao chegar lá numa tarde fria, mas muito fria de julho de 2014, eu não encontrei uma alma viva naquela que foi o mais significativo centro de repressão do regime militar pinochetista. O local era um reduto gastronômico de imigrantes italianos até 1973. Daí o seu nome, "Villa Grimaldi". Entretanto, foi desapropriado à força pelo regime militar e passou a funcionar como centro de tortura por quase uma década. Situada ao pé da Cordilheira e vizinha do aeroporto, a Villa hoje é um patrimônio histórico tombado que abriga ruínas de um macabro passado recente da América Latina.

Eu permaneci quase três horas dentro da Villa a fim de ler com atenção todas as informações oferecidas pelo Museu. Feito isso, pratiquei uma caminhada em passo contínuo (cerca de trinta minutos) com a câmera ligada a fim de registrar um olhar de observação sobre suas ruínas. Dias depois, eu me deparei com uma parada cívica de uma fanfarra de um colégio privado ao longo do Paseo Ahumada (uma espécie de "calçadão" central). Bem, não pude me furtar às associações históricas: pensei em editar a visita à Villa com as trilhas sonoras daquela 'paradinha militar contemporânea'....


O Chile hoje vive o segundo Governo de Bachelet. Desde 1990, com o famoso "informe Rettig", o país procurou seus próprios caminhos em busca da reavaliação do seu passado militar. A partir de 2003, a Comissão Valech consolidou as políticas institucionais em torno das investigações e reparações históricas vinculadas às violações dos Direitos Humanos.

CODA: NARRAÇÃO É REDENÇÃO
Nos idos de 1930, Walter Benjamim questionava o valor da narração no mundo contemporâneo. Ele afirmava que o avanço da modernidade nos roubava a capacidade de narração. Para ele, narrar envolvia uma dimensão humana fundamental: a capacidade do ser se reencontrar consigo mesmo. A narração seria uma forma do indivíduo se desautomatizar, se desabituar, se desvincular de um cotidiano frio, burocrático e administrativo e se deixar envolver com um mistério, com um encanto maior chamado palavra. Porque é a palavra que funda a vida.

Abraços!
Profábio.