quarta-feira, 30 de abril de 2014

A nudez da política

Resumo: o propósito do artigo é provocar a seguinte questão: por que gostamos de desnudar a vida contemporânea?

PENSAR TEM PESO 
Sempre que tenho que abordar as perspectivas entre Sócrates e Platão em sala de aula, eu recorro à Hannah Arendt (1906-1975). Ela afirmava que, ainda no século vinte, "éramos capazes de pensar um pouco mais que Sócrates e ainda menos que Platão." O que me encanta no território arendtiano são suas considerações sobre a ação política e sobre como as distâncias entre aqueles filósofos possibilitaram a transformação da autoridade em despotismo. Ao conceber um ideal de cidade, Platão abre a possibilidade de divorciar o pensamento da ação política; afinal, a ideia de governo que, em Sócrates era institucionalizada pela dialética, pelo debate público, nele passa a envolver a administração das vontades dos outros por uma aristocracia. A força da dialética (o diálogo) passa, então, a ser traduzida pela dialética de forças (a violência).


Da mesma forma, quando penso em apresentar Aristóteles, eu me valho de Agamben (1942 - ), um italiano pensador do contemporâneo e nascido na mesma época em que Arendt tem seus direitos cassados pelos nazistas e, por isto, decide emigrar da França para os EUA. Existem algumas afinidades entre o pensamento de ambos, dentre elas a preocupação com os valores em torno da dignidade humana no mundo contemporâneo. Corro o risco inerente à didática ao afirmar que aquilo que Arendt chama de "condição humana" é o que Agamben chama de "vida nua": ambos conceitos são tentativas de compreender porque e de que maneiras naturalizamos, normalizamos e normatizamos a violência hoje em dia.

SORRIA, VOCÊ ESTÁ SENDO CAPTURADO
Dentre as muitas bobagens que vi e ouvi de colegas professores de Sociologia, está a de que o "o positivismo do século 19 pretende levar a sociedade de um estágio negativo para um estágio positivo (...)". Tamanha besteira não me permite estabelecer o hiperlink que a evidencia. O que importa é esclarecer que o conceito de "positivo", originalmente cristão, sofre transformações ao longo da Modernidade até ser compreendido como uma carga de normas, de regras, de ritos impostos aos rumos da História. Basta ler Hegel. Mas já que Hegel dá dores de cabeça, então leia Agamben em "O que é um dispositivo": ao menos as cefaleias serão mais requintadas.

É Foucault quem nos permite transitar de "positivo para dispositivo".  De tanto estudar loucura, marginais, ciências psicos e 'instituições-sequestros' (escolas, hospitais, clínicas psiquiátricas, internatos e baratos afins), este francês - contemporâneo de Agamben - nos legou a ideia de que "dispositivo é aquilo que captura", ou seja, os dispositivos são práticas e mecanismos que envolvem jogos imediatos de poder.

Portanto, quando você ouvir sobre "positivismo" e "dispositivos", preocupe-se: alguém está afim de regular, normatizar, educar, disciplinar, domesticar e adestrar seus pensamentos, desejos, intenções, corações, mentes e corpos em nome de determinados valores sociais. Costumam dizer que estes valores são ordem e segurança pública. Porém, é importante perceber que estes valores não são essenciais, ou seja, não são próprios, inerentes à dignidade humana: ao contrário, são determinações sociais, são construções históricas que, por sua vez, passam a querer nos dizer quem é digno de vida - ou não.


ZOÉ, BIOS E NUDEZ
Em "O que resta de Auschwitz", Agamben afirma: "a notícia atroz que os sobreviventes carregam dos campos para a terra dos seres humanos é precisamente a de que é possível perder a dignidade e a decência para além da imaginação, de que ainda há vida na degradação mais extrema (...)". Veja, o que está em questão não é somente Auschwitz, mas a base de Guantánamo, a guerra civil síria, as fronteiras de Tijuana, a praça Taksim, a praça Euromaidan, as ruas venezuelanas, a guerrilha no Mali, a favela da Maré.

Agamben desenvolve sua compreensão sobre política contemporânea a partir do que Aristóteles chamou de vida zoé e vida bios: a primeira é o território do espaço doméstico, a segunda o do espaço público. A vida zoé é o reino das necessidades, a vida bios é o reino das possibilidades. A vida zoé é patética, ela é marcada pelo pathos, pelo drama, pela ira e emocionalidade inerente aos instintos humanos. Dentro de casa, temos uma liberdade com os demais, um "jeito" de falar, um trato humano demasiadamente afetivo que atende aos nossos instintos de preservação e segurança, mas também compromete o nosso juízo e a nossa vida moral. Portanto, a vida zoé é animal, bruta, fisiológica e impulsiva: é o reino do "eu quero".

Ao contrário, porque somos todos animais políticos, ou seja, porque somos todos capazes de criar e compartilhar valores para a vida, não podemos levar a vida zoé para o espaço público: nele pouco importa o que queremos, mas sim o que podemos e o que devemos. Esta é a origem da vida bios, ela trata da realização do nosso potencial para uma vida boa, uma vida melhor qualificada. Esta qualificação da vida é o que chamamos de política e ela deve ser construída e realizada na Ágora, no espaço público, que é o território da celebração das diferenças e da definição de virtudes: é a satisfação do ethos (ética). Portanto, a vida bios é social, racional e dialética: é o reino do "eu posso, mas eu devo?"

PORQUE A NUDEZ NOS ENCANTA
Porém, como agir quando fazemos política para eliminar de determinadas pessoas a possibilidade delas fazerem política? Como nos comportarmos quando a nossa vida zoé trata de impor uma vida bios aos outros? O que devemos pensar quando aquilo que deveria ser um processo de qualificação da vida se torna um processo de extermínio da dignidade humana? E como ler imagens quando a diplomacia se torna um exercício de imposição de violência e de sacrifício de "zoés" por aqueles que se julgam "bios"?

Abraços,
Profábio.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

os três lados da moeda

Resumo: o artigo se propõe apresentar como são fabricadas as memórias em torno da ditadura militar.
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Um dito popular nos informa que "recordar é viver". Leio-o com ceticismo, afinal a memória é, por natureza, seletiva: dentre suas funções está a de nos ajudar a esquecer as coisas - e não recordá-las. Não fosse assim, pense no seguinte exemplo: imagine-se aos vinte e um anos capaz de se lembrar e atualizar recordações de longas duas décadas... Seríamos uma espécie de "Benjamim Button", um paradoxo existencial, pois seríamos consciências velhas em corpos jovens! Então, retomo o raciocínio: recordar talvez não seja viver, e sim negar a vida presente, é resistir ao tempo. Recordar, portanto, é religar, é atualizar experiências, é retomar uma nova ação em busca de um outro tempo. Um tempo onde o passado passa.


Neste ano de 2014, o Brasil tem a chance de fazer o devido check-up de sua curta democracia: estamos prestes a celebrar o inédito sétimo ritual eleitoral e, além disso, de maneira muito oportuna, temos condições de ouvir nossos intelectuais discutir e qualificar o que foi o Regime Militar. Porém, a pergunta é importante: existem reais condições de um debate qualificado? Quais as reais chances de a caserna abrir e apurar seus arquivos? Com que cara devemos ler as insistentes declarações de "Continência a 1964" presentes na mídia? Se ontem  os conservadores estavam bem localizados à margem da sociedade devido à hegemonia cultural da esquerda, que conclusões nos são possíveis hoje frente aos depoimentos dos conservadores que ocupam a base governista brasileira junto com a chamada esquerda?!

Na tentativa de fugir dos ânimos pessoais assolaram o debate público sobre o 1964 nas últimas semanas, gostaria de registrar aqui alguns filmes que trazem à tona as tensões entre memória e história e esclarecem fatos importantes relativos ao Golpe Militar de 1964 e a consequente Ditadura Militar.

1º LADO: A MEMÓRIA SILENCIADA


Joaquim Pedro de Andrade apresenta aquele que talvez é o marco maior da obscenidade do regime militar: a morte e a negação da morte do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI. A estratégia fílmica de J.P.A é impactante, pois parte para as entrevistas determinando um grande close nas faces dos envolvidos no "caso Vlado". O rosto dos depoentes se tornam paisagens históricas feitas de realidade bruta. Nelas lemos peças de sentimentos do cárcere e identificamos as vozes que ficaras silenciadas décadas. Seguramente, este filme é uma obra maior do documentarismo brasileiro.

2º LADO - A MEMÓRIA MEDIADA



Ao tratar do sequestro de Charles Elbrick em 07/1969, Da-Rin se vale de um recurso potente nas entrevistas: ele apresenta vídeos de época aos envolvidos à medida que desenvolve seus encontros. Dessa forma, o que vemos além das confissões políticas sobre os eventos do sequestro, são justamente as reações espontâneas de alguns entrevistados frente às imagens de época. Elas demonstram como a memória funciona, como nos lembramos daquilo que queremos lembrar, ou melhor, como nós também determinamos o que e como queremos nos lembrar do passado. Enfim, é notável como as imagens de "guerrilheiro" e de "resistência à ditadura" são construídas diante de nós ao longo do filme.

3º LADO - A MEMÓRIA OBSCENA



Esta é para quem tem fôlego: a primeira parte do depoimento de Paulo Malhães à Comissão da Verdade. A partir de uma "lógica eichmanniana", ele logo aos cinco minutos, declara que "sendo militar, a ele não cabia ter escolhas, e sim seguir ordens (...) mesmo porque nunca chegou a pensar nisso (...)". Seguindo este raciocínio imoral, ele desfia sua formação militar, esclarece como "aprendeu a amar a pátria, sobretudo", responde sobre seus contemporâneos nos movimentos anticomunistas e avança rumo aos detalhes das práticas de tortura. Ele esclarece como decidiu "trabalhar no tempo" e, portanto, nunca deixou de "ser um estudioso": estudou técnicas militares norteamericanas e israelenses. Seu depoimento é das raras vozes confessionais que esclarecem as práticas de desumanidade que foram legitimadas e legalizadas pelo regime militar. A maldade se tornou funcional, ordinária e rotineira nas "Casas de Conveniência", os lugares onde se conquistam os presos para que se tornassem infiltrados. Ossos? "Podem esburacar o Brasil inteiro que não vão achar nada (...)"

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CODA: RECORDAR É NÃO VIVER

Silvio Tendler encontrou militares que recusaram a lógica eichmanniana e aceitaram o convite para depor em "Militares que disseram não":


https://www.youtube.com/watch?v=7QyF3xNtfVE

Pode-se ver que recordar também é não querer viver o mesmo jamais.

Abraços,
Profábio.